Depois da crise econômica global de 2008/09, o tema “falhas de mercado” tornou-se dominante, especialmente nos países mais desenvolvidos, sobretudo nos EUA, onde funcionava de fato um mercado financeiro aberto.
No Brasil, líderes políticos, a começar por Lula, e economistas alinhados à esquerda embarcaram alegremente na onda. Mas os fatos mostram todo dia que nosso problema real está no lado contrário, nas “falhas do Estado”.
Pela lei, ninguém pode construir uma casa e se instalar nela sem obter diversas licenças municipais e estaduais. Paga-se caro por isso e leva tempo.
Ninguém pode construir em áreas de risco ou de preservação. Autoridades das prefeituras e do governo estadual são responsáveis pela fiscalização e pela prevenção, de modo a avisar as famílias dos perigos que elas correm e de retirá-las em momentos críticos.
Os três níveis de governo têm a obrigação de manter prontos os sistemas de defesa civil, para atender as populações em caso de catástrofes.
E o que se vê nestes dias?
A destruição e a morte atingem famílias que moravam em casas construídas sem licenças, em regiões proibidas.
Dia desses, o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, tentando se explicar, disse que a população “sabe que está em área de risco”. Ora, a Prefeitura também sabe, não é mesmo?
Certamente há uma responsabilidade pessoal dessas famílias. Para elas, no entanto, existe uma explicação, se não uma justificativa. A alternativa é morar mais longe, circunstância que não raro inviabiliza o emprego, considerando as falhas do transporte… público.
Já o governo falha clamorosamente em todos os momentos. Deixa construir onde não pode, permite que as famílias morem lá (muitas vezes, cobra impostos!), não as avisa da iminência de catástrofes, não as retira a tempo e é ineficiente no socorro às vítimas.
Com detalhes de crueldade: mesmo sabendo do perigo imediato, famílias se recusam a deixar suas casas porque sabem que serão saqueadas. São levadas a essa escolha dramática: ficando, correm o risco de serem varridas num desabamento, mas entendem que o risco pode ou não ocorrer. Já saindo, acreditam que perderão tudo, pois consideram certo que a polícia não vai aparecer por lá.
Dirão: “Ora, isso tudo só prova que precisa mesmo de mais governo, certo?”
Essa é a reação das autoridades. Prometem criar e reforçar órgãos e sistemas, garantem a alocação de mais verbas.
Mas podem apanhar os jornais da época dos últimos temporais que encontrarão as mesmas declarações. Não precisa de mais governo. Nem de mais gasto público. Já tem, e muito. Só que não presta.
Considerem o caso das licenças de construção e habitação de residências e de abertura e funcionamento de comércios. Há repartições municipais e estaduais para cuidar disso. Têm funcionários, com seus ritos burocráticos, e todos os interessados precisam se dirigir até lá. Logo, precisa de muita gente.
Mas do que se ocupam? Da papelada, dos processos. A fiscalização in loco é parcial e mostra a experiência, tanto mais rigorosa e quanto mais legalizada é a obra ou o empreendimento.
Há algum tempo, o dono de um conhecido restaurante da cidade de São Paulo, ganhador de prêmios, estava simplesmente possesso depois de ler o noticiário dando conta de que um estabelecimento na avenida Liberdade servia carne de cachorro, proibida, e ainda em péssimas condições sanitárias.
“Qual é a bronca? Os caras foram apanhados!”, diziam-lhe. “É, mas levaram três anos”, respondia nosso chef, complementando: “Aqui, na minha casa, os fiscais vêm a cada 15 dias para dizer que a pia está 1o centímetros fora do lugar ou que falta um degrau ali do lado”.
Reparem: a fiscalização é limitada e diretamente proporcional à condição econômica da região. É mais rígida – e, em geral, falsamente rigorosa – nas regiões urbanas mais ricas e mais frouxa ou inexistente nas áreas mais pobres.
Alguns dirão que faz sentido. Afinal, se forem exigidos critérios do restaurante Fasano para a periferia de São Paulo, não sobra um bar ou restaurante aberto por lá.
Mas o que quer dizer isso? Que, do ponto de vista do governo, os pobres podem, sim, comer comida estragada?
Quanto ao caso mais grave das residências: o fiscal encrenca com o tamanho da janela num apartamento do Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro, mas não vê a casa na encosta de risco. Dirão: “Se aplicados os critérios de Higienópolis, não fica uma residência de pé na periferia de São Paulo”. Ou seja, pobre pode viver sob ameaça.
Claramente, todo o sistema não presta. A legislação e as burocracias, pretensamente rigorosas, dificultam e encarecem de tal modo os empreendimentos que só aqueles com mais recursos conseguem ficar dentro da lei. E a fiscalização vai mais em cima desses aí.
Parece óbvio que o fiscal não precisa visitar mensalmente os restaurantes da moda ou os bairros de classe média para cima. Uma blitz barulhenta de vez em quando é suficiente para criar um ambiente de, digamos, temor saudável.
Mas precisa ir toda semana nas áreas de risco e ali onde há mais ameaças à saúde das pessoas. As regras são inaplicáveis ali? De novo, é falha de Estado. E essa falha é clara: exagerado e caro onde não precisa, ausente onde e quando precisa.
Ressalva de garantia: sim, há setores que funcionam bem, há repartições que se modernizaram. Mas toda essa catástrofe é, no essencial, falha de governos.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 17/01/2011
Se formos mais fundo na questão, observaremos que é falha dos cidadãos por permitir que governo assuma outras funções além do da segurança. As pessoas pensam que governo é constituido por anjos e tem o poder da perfeição. O governo é o aparelho da violencia. O objetivo é fazer as pessoas obdecerem a lei e assim permitir a ordem social. Não se deve atribuir nenhuma função de carater economico ao governo. Se ocorrer isto, o resultado a colher será sempre estes por qual todos se queixam:destruição