A diferença entre o cronista e o jornalista não é de estilo ou argúcia. É de tempo. O repórter e o editor escrevem na calor da hora, o cronista tem tempo. Raramente antecipa; normalmente, está defasado ou no mundo da lua. É o caso hoje. Já esquecemos o flagelo dos deslizamentos, mas entramos no das mudanças políticas não planificadas por eleições. O caso de uma parte do mundo árabe, começando pela Tunísia e pelo Egito, é prova disso. E a nossa falta proverbial de ações preventivas relativas aos flagelos, outra.
Os flagelos suspendem a convicção burguesa e iluminista de um mundo ordenado, funcionando por etapas. Como as histerias e neuroses, eles são casos reveladores de intrusões obscuras. Como um clamor liberal pode surgir numa burguesia que seria a beneficiária de todas as ditaduras? Tal qual os deslizamentos de Friburgo e Teresópolis, os flagelos políticos das mudanças radicais e não planificadas são revelações de que a ordem do mundo não segue os padrões de nossa vã sociologia política. O mundo é mais embaralhado do que pensamos e ele dá saltos mortais inesperados.
Por isso, eu me interesso pelas teodiceias das catástrofes. Tanto das naturais, quanto das políticas. Estou muito interessado nos seus significados cósmicos. Ou seja: como o acidente capaz de produzir tanto sofrimento e compaixão, ocorre aqui e não ali. Se – como dizia o Frei Junipero no prodigioso livro de Thornton Wilder, A Ponte de São Luís Rei – existem leis em algum lugar, deve haver leis em todos os lugares, cabendo aos observadores descobri-las. O problema é que, quando fazemos um mapa moral da vida coletiva, o que encontramos é uma balbúrdia. Os bons e fracos sofrem tanto quanto os canalhas e fortes, como faz prova a nossa história política, toda ela marcada por reviravoltas que não conduzem a mudanças, mas repetem velhas jornadas. Em geral, digo logo, os flagelos subtraem a nossa onipotência tecnocientífica e nos nivelam às humanidades ditas primitivas, atrasadas ou arcaicas. Elas colocam numa nova perspectiva coisas que julgávamos definitivamente resolvidas; ou que estavam ocultas pela nossa mendacidade político-eleitoreira.
É assim que quero falar dos flagelos. Não desejo examinar o seu sentido técnico ou político (a ele fortemente ligado) que é sempre prático, mecânico e reativo: as casas desabaram porque foram construídas numa encosta errada por meio de uma licença fornecida pelo populismo irresponsável dos políticos que “servem ao povo” e assim ficam imensamente ricos; a revolta foi desencadeada pelos oprimidos que demandam liberdade. Mas quero vê-los no seu sentido moral ou cósmico. Aqui, cabe perguntar como as populações atingidas explicam o flagelo? Por que esta encosta e não aquela? Por que a minha casa e não a do outro? Só entendendo essas razões, podemos fazê-las cobrar reparos, liquidando o populismo.
Além disso, é preciso saber mais sobre as diferenças entre os flagelos. Uma peste tem um peso diverso de uma tempestade. Ela chega sorrateiramente, como a epidemia de virar rinoceronte do formidável Ionesco. Um sujeito se transforma em rinoceronte aqui, outro ali, ninguém dá muita bola e logo nos deparamos assustados com uma multidão de rinocerontes e descobrimos algo duro e protuberante na nossa própria testa…
Terremotos e tsunamis, como os deslizamentos, não se anunciam. Por isso, denunciam a temeridade de viver de um certo modo num dado local. Eles mostram o horror de uma falha humana porque, afinal, o mundo é, de cabo a rabo, humano. Por isso, demandam uma busca de responsabilidade moral e de pró-ação, coisas que não temos a coragem de fazer no Brasil. De fato, atingindo indivíduos de modo paulatino, as epidemias são rarefeitas, enquanto um deslizamento (ou terremoto) tem a propriedade de simplesmente acabar com o chão – onde se vive e na qual a própria ideia de equilíbrio, de centro e de base a vida se estrutura pois, nesses eventos, milhares são fulminados de uma só vez. Daí a sua tragédia. No plano social, somente os golpes de estado e as revoluções se comparam com esses grandes desastres naturais. Esse “natural” que se confunde com um Deus que pune seus filhos desgarrados e assim deixa escapar administradores públicos (chamados erroneamente de “políticos”) e especuladores (chamados enganosamente de “empresários”) canalhas e irresponsáveis. A atribuição de uma imputabilidade divina recalca a causa imediata (o descaso dos gerentes públicos), do mesmo modo que ela bloqueia a ação preventiva porque, afinal de contas, tudo foi uma obra do acaso que não é responsabilidade de ninguém.
Deixamos de ordenar o mundo humanamente, não quando abrimos mão do que não podemos controlar, mas quando deixamos de lado o que é nossa obrigação prevenir. Um deslizamento não tem motivo ou intenção, mas sem intenção e motivo – ou seja, sem pôr as cousas numa ordem, situando o que é mais ou menos importante e valorizado – nós não poderíamos viver coletiva e humanamente, pois nada faria sentido. Dos baralhos aos eventos de nossas vidas. O problema é que, no curso de uma vida, há muitos embaralhamentos. Vivemos embaralhados nos baralhos e não é fácil separar as cartas e armar novos jogos. Coisa que, como dizem os flagelos, o Brasil precisa realizar com urgência.
Fonte: O Globo e O Estado de S. Paulo, 02/01/2011
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