A publicação de informações referentes às finanças públicas deveria repousar mansamente no centro do relacionamento entre o Estado e o cidadão que paga impostos, este triste personagem de poucos amigos em Brasília. Tinha de haver um protocolo internacional bem rígido para isso, como existe para a contabilidade de empresas privadas, para as quais as manipulações contábeis resultam em escândalos e prisões. Já para os Estados nacionais, a despeito de convenções, cada um faz de acordo com suas agendas locais e sua veia artística. Infelizmente, esse é um de muitos assuntos de economia que cabem na descrição “mais arte do que ciência”: o “superávit primário” brasileiro, em particular, tornou-se uma obra a meio caminho entre a arte conceitual e o neoconstrutivismo abstrato.
A névoa é espessa, mas os indícios parecem indicar que o estado das finanças públicas é muito precário, como se argumenta a seguir. E, se assim é, as autoridades traem a confiança do cidadão ao pavonear a solidez das nossas contas, sobretudo na presença conspícua de critérios oblíquos, dissimulação, meias verdades e de pequenos truques utilitários para simular o atingimento de metas que não significam coisa alguma.
A deficiência na prestação de contas, por conta dessas manipulações, revela uma deslealdade básica com relação ao cidadão, que em muito se parece com o adultério. Raramente há flagrante ou confissão nesse domínio; trabalha-se apenas com indícios ou com interpretações. Ezequiel se parece com Escobar; isso prova que Capitu traiu? O pecado, jamais admitido, se torna matéria de julgamento da parte enganada, crescentemente casmurro e hesitante diante da ausência de confirmação, por isso passando a impressão de apatia, ou de consentimento tácito, seja pelo tédio à controvérsia ou pelo medo das consequências.
Mas quais são os indícios? Vamos ao mérito, de forma bem simples.
A nação possui uma renda anual de 40 unidades (todas as quantias daqui pra frente serão medidas em porcentuais do PIB), mas deve aos bancos 65 unidades. O Brasil é o maior devedor entre os países emergentes, com exceção da Índia. Com o reconhecimento de “esqueletos”, o número pode ser bem maior.
Usando a métrica de empresas, a dívida equivale a um ano e meio de faturamento, e mais de 32 vezes a geração de caixa, que nas empresas se conhece como Ebitda ou Lajida (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortizações), e que para o governo equivale ao “superávit primário”, que está na faixa de 2 unidades. É uma alavancagem inaceitável para empresas.
O país possui reservas internacionais no valor de 26 unidades, mas em moeda estrangeira, com a qual, todavia, não é possível pagar os credores locais. Assim, a enganação começa quando as autoridades afirmam que só devem 65-26 = 39 unidades. Se o indivíduo deve 10 maçãs e possui 5 laranjas, não faz sentido dizer que possui uma dívida “líquida”, a menos que use um liquidificador para transformar tudo em suco. Se o leitor acha que estou sofismando, pergunte aos técnicos sobre o que se conhece como “o problema da transferência”, um clássico entre economistas, pelo qual se sabe que dívida interna se paga com superávit fiscal, e a externa com superávit comercial.
A dívida pública no Brasil é muito alta, e talvez a mais cara do mundo: o governo tem de pagar algo como 15 unidades de amortização e 5 unidades a título de juros a cada ano. Só aí, metade da arrecadação seria consumida, de modo que a rolagem das amortizações, e também a capitalização dos juros, se torna crítica, e há anos que é assim. Os países da periferia europeia, como Grécia, Espanha e Portugal, têm números parecidos, e quebraram por incapacidade de rolar suas dívidas. O Brasil não tem esse problema, pois sua dívida é doméstica e rolada continuamente num mercado cativo, no âmbito do qual a riqueza em moeda nacional não tem alternativas importantes. Sobretudo se as taxas de juros são as maiores do planeta.
Nos últimos anos, todavia, essa construção começa a revelar certa fadiga em razão da redução na taxa Selic. O Tesouro não tem conseguido rolar as quantias que gostaria nas condições que deseja e, por conta disso, amortiza seus títulos que vão vencendo e gerando “liquidez excessiva” que o BCB “enxuga” através das chamadas operações compromissadas. Os valores acumulados nessas operações já andam pela casa de 10 unidades. E para números assim tão altos é inequívoca a percepção de que o BCB está substituindo o Tesouro na rolagem da dívida, o que pode ser interpretado como financiamento ao Tesouro, conduta vedada pelo artigo 164 da Constituição.
O que está claro é que o tamanho da dívida impõe uma limitação muito clara à queda dos juros. O nome dessa doença é “dominância fiscal”: o governo (Tesouro e BC) precisa pagar mais caro, ou mais curto, para as pessoas carregarem dívidas e déficits elevados.
Mas, a despeito de tudo isso, as autoridades alimentam enormes ambições de investimento, compreendendo obras do PAC, prospecção de petróleo e criação de bois. A questão intrigante é como vão conseguir dinheiro para isso tudo?
Bem, a explicação é acaciana: o governo possui um banco. Aliás, vários deles. Um deles, o Central, está proibido de lhe dar crédito (mas aparentemente não de fazer montanhas de operações compromissadas de efeito semelhante), mas não os outros. É com esses que se concebeu a seguinte opereta: o governo dá ao banco um papagaio que o banco transforma em dinheiro e empresta para um amigo procurar petróleo e para outro criar bois.
Na hora de explicar à cidadania, quando lhe perguntam se a dívida aumentou, as autoridades respondem que fizeram um investimento em uns empreendedores arrojados e campeões, de tal sorte que o patrimônio nacional não se vê afetado. A dívida “líquida”, aquela formada de suco de frutas, não se move.
Usando essa via meio transversal, o governo gastou 12 unidades nos últimos anos, uma montanha de dinheiro, com os tais campeões. Quem tem bancos para usar dessa maneira não dorme no sereno. Bancos privados não podem emprestar para seus controladores, dirigentes e suas empresas. A Lei 7.492, conhecida como “lei do colarinho branco” define como crime.
O fato é que ninguém percebeu essa despesa toda e seu impacto no endividamento público. Ou será que percebeu? Por que será que de uns tempos para cá cresceram tanto as alegações de “falta de confiança” nas ações de governo? Por que os mercados estão casmurros cada dia mais um pouco? Talvez os indícios de adultério tenham passado dos limites.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 26/05/2013
Finalmente um texto que esclarece os gastos públicos para pessoas normais. Vou levá-lo para um ambiente acadêmico. Obrigada.