“Há um excesso de personalismo e decisões que estão totalmente fora daquilo que o país tem necessidade”, afirma o antropólogo e escritor Roberto DaMatta. Entrevista pelo Instituto Milleniu, DaMatta procura explicar como a contratação de pessoal não concursado pela administração pública reflete um comportamento da sociedade brasileira.
Autor de importantes estudos sociais, como “A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil” (1984), DaMatta propõe a politização das relações pessoais e destaca a importância do concurso e da meritocracia no processo de seleção para cargos públicos. “Não posso montar uma peça de Shakespeare com amadores. As relações entre o ator e o papel devem ser medidas de maneira precisa. A indicação pessoal pode ser por simpatia e a desculpa para nomeação de parentes é brasileiríssima. Eles nomeiam seus filhos ou irmãos porque tem uma confiança absoluta neles. E se essas pessoas cometerem desvios eles dirão que não acreditam que sejam culpados pelo mesmo motivo”, afirmou.
Instituto Millenium: Ao instituírem o sistema de indicações de funcionários, os representantes do poder político estão refletindo a postura dos brasileiros, isto é, há uma transposição do comportamento privado para a esfera pública?
Roberto DaMatta: Estamos começando a politizar a questão dos papéis sociais e não é à toa que o Instituto Millenium recebe fogo de todo os lados. Os conflitos de interesses que estão sempre presentes nos papeis públicos que todos nós, do lixeiro ao garçom, passando pelo professor universitário, pela secretária e, sobretudo, por aqueles que são representantes do povo brasileiro nas instâncias municipal, estadual e federal, desempenhamos. A questão é quando os papéis desempenhados em casa junto aos familiares, compadres e amigos, cujo pressuposto é sempre a ajuda e o socorro mútuo, se confundem com o uso do cargo público.
Não faz parte da nossa tradição política a discussão do uso dos recursos públicos porque temos um centralismo administrativo muito grande. Passamos da monarquia para a república com poucas discussões sobre o federalismo. O federalismo foi praticamente colocado como tabu no Brasil, sob o argumento de que promoveria a centrifugação do país. A monarquia foi como quase que incorporada pela república, porém os poderes dados ao presidente da república, após a Revolução de 30, foram maiores.
Imil: Essa ausência de esclarecimento sobre a coisa pública passa pela falta de uma separação clara dos conceitos de política e governo no Brasil?
DaMatta: O funcionamento do nosso Estado se dá através de uma entidade que chamamos de governo, que é personalizada. Esse é o pulo do gato do ponto de vista analítico. No Brasil, a sociedade foi pouco incentivada pelo empresariado e cidadãos a discutir o seu papel na construção do país. Por isso, o Instituto Millenium tem uma função importante.
Quando você trata do governo há toda uma conjuntura, mecanismos de relações pessoais, de leis, que passam propositalmente despercebidas, e de atos secretos, como aconteceu no Senado federal. O Senado não se sentia na obrigação de prestar contas à sociedade sobre um conjunto de atos secretos. No entanto, é a sociedade que paga os custos operacionais dos senadores que tem até 14º salário, o que mais ninguém tem.
Imil: Qual é o papel dos funcionários indicados para cargos comissionados? Eles são importantes? Vão desempenhar um papel fundamental para a sociedade brasileira?
O ano de 2012 talvez seja central para o retrocesso da democracia brasileira ou para o seu avanço em razão do julgamento do mensalão. O desdobramento do affair entre Rosemary Noronha e o ex-presidente Lula é fundamental. Ou nós, como cidadãos, entramos no jogo escrevendo em jornais e fazendo movimentos contra determinadas medidas e determinados planos ou, então, nós vamos retroceder. Há um excesso de personalismo e decisões que estão totalmente fora daquilo que o país tem necessidade.
Imil: Por que é importante usar o sistema meritocrático, através da realização de concursos públicos, para preencher as vagas do funcionalismo público?
DaMatta: Do ponto de vista sociológico, concurso e meritocracia é a indicação impessoal e relativamente automática daqueles que se candidatam livremente e em condições igualitárias. É uma tentativa de equilibrar a pessoa e o papel. Eu não posso montar uma peça de Shakespeare com amadores, se pretendo que o público pague pela peça. As relações entre o ator e o papel devem ser medidas de maneira precisa, o que não existe no caso da indicação pessoal, que pode ser por simpatia e a desculpa para nomeação de parentes é brasileiríssima. Eles nomeiam seus filhos ou irmãos porque tem uma confiança absoluta neles. E se essas pessoas cometerem desvios eles dirão que não acreditam que sejam culpados pelo mesmo motivo.
Imil: As indicações desestimulam os brasileiros que estão se dedicando para prestar concursos para o funcionalismo, afastando profissionais mais bem preparados da administração pública?
DaMatta: Sem dúvida. Uma coisa que Tocqueville diz é que a democracia muda o estilo de convivência social. O que ele percebeu ao visitar os EUA, na década de 30, foi que a calibragem do igualitarismo, que ele chama de princípio gerador da democracia, e da liberdade como valores criam um estilo de pertencimento social que tem conseqüências positivas e negativas. Ele mostra a importância dos jornais e do poder Judiciário como elementos de equilíbrio entre a liberdade e a igualdade; que promove o civismo – uma marca não só do sistema americano, mas das democracias estabelecidas.
Como vou ter um comportamento cívico, se estou queimando as pestanas para fazer um concurso e fico sabendo que há indicações para cargos até melhores? Isso significa um retrocesso da democracia porque é de fato uma aristocratização através de mecanismos pretensamente democráticos. Aí está a calhordice desse tipo de coisa.
Imil: A consolidação do sistema democrático é o caminho para impedir que antigos hábitos da sociedade, como a apadrinhamento, tenham reflexos na política?
DaMatta: O sistema democrático é o caminho, mas ele precisa ser traduzido para a população. Quando proclamaram a república, em 1889, ninguém sabia o que era a república nesse país. Até hoje ninguém sabe direito o que é democracia. Uma coisa é você ter a democracia escrita em um papel, que foi o que os republicanos fizeram em 89, ter essa democracia reescrita em várias constituições, outra coisa é ela ser aplicada.
A exigência da impessoalidade, que é a exigência de uma equidistância dos cargos públicos, é elementar na democracia. O cargo público não pertence aos governantes, mas ao país como um todo. No Brasil não se pode nem despedir os funcionários públicos. Há uma diferença fundamental entre trabalho e emprego. Algumas pessoas não querem trabalho, querem emprego. O emprego público é o ideal porque você vai ganhar bem e vai virar um filho do Estado para o resto da sua vida.
Imil: O sistema de indicação de funcionários no poder Legislativo e no outros poderes contribui para a manutenção da corrupção nessas instituições?
DaMatta: Não tenho a menor dúvida.
Imil: O senhor acredita que hábito do apadrinhamento está impregnado de forma irreversível no funcionalismo público, isto é, estamos fadados a repetir práticas clientelistas baseadas em trocas de favores e em interesses individuais que têm pouco ou nada a ver com a coletividade?
DaMatta: Está e não está. Se estivesse totalmente enraizado essa entrevista não estaria sendo feita e nem existiria o Instituto Millenium. O liberalismo brasileiro já teria sucumbido há muito tempo. Há um desconforto, um mal estar no Brasil que é promovido por um governo que foi eleito com uma agenda democrática e que se comporta de maneira autocrática, que se recusa a admitir culpa e promove obstáculos às investigações dos seus próprios atos quando esses atos são notoriamente desviantes de uma conduta normal de um governante que tem preocupação com a coisa pública.
As práticas de compadrio e de amizade devem que ser disciplinadas e a única maneira é admitir que elas existem e são um problema político importante. O que eu estou propondo é uma politização das nossas relações pessoais para podermos dar o salto que todas as sociedades que adotaram o sistema liberal democrático deram. Essa distinção nítida entre o que é meu e aquilo que pertence ao coletivo. O papel do administrador público tem que ser profundamente discutido no Brasil. Em uma democracia não pode existir a famosa frase “sabe com quem está falando?”. Todos nós sabemos com quem estamos falando em uma democracia, falamos com uma pessoa igual a nós.“Há um excesso de personalismo e decisões que estão totalmente fora daquilo que o país tem necessidade”
De nada adiantam concursos públicos para cargos do sexto escalão para baixo se existem milhares de cargos comissionados do terceiro escalão, que são indicação do deputado tal, do governador qual, do ministro zé das couves etc.
Excelente o ponto de vista do ilustre antropólogo. É preciso respeitar a “res”publica, a coisa pública que, em uma democracia se refere à igualdade de oportunidades e de responsabilidades. Nossos governantes,infelizmente insistem em manter o hábito da mistura do publico e do privado e, naturalmente usufruindo as vantagens advindas deste comportamento.Entretanto, para que se possa estabelecer um regime democratico verdadeiro,com possibilidades iguais para todos, em todos os níveis, há que investir,nunca é demais repetir, em EDUCAÇÃO.
Entendo que a sociedade terá muitas dificuldades de enfrentar esse tipo de atitude, fortemente impregnada na cultura brasileira. Ela existe em qualquer ambiente em que são necessárias algumas formas de divisão de autonomias, mas não de responsabilidades. A tal “coisa pública” se torna “propriedade totalmente particular”, na forma de que as decisões e os resultados são de interesse somente do, agora, gestor do setor/divisão/secretaria…. etc. Qualquer pessoa “fora do esquema” será compreendida como intruso, não sendo permitida qualquer ação de “curiosidade” sobre os atos e resultados. Essa, ao que me parece, ainda é a percepção, e as atitudes, das pessoas que são guindadas aos cargos comissionados. O que ainda fica pior nessa situação, é que algumas dessas pessoas, presenteadas, podem ser definidas como verdadeiros párias da sociedade. Vivem de nomeações. São, efetivamente, escravos daqueles que detem cargos públicos. Esse tipo de pária em nada contribui, apenas suga. São muitos.
Acho que a demonização do servidor público que os liberais às vezes fazem é contraproducente. Deveriam separar o joio do trigo e deixar claro que existem as carreiras típicas de estado, que não podem, nem devem, ser delegadas.
A universalização do concurso público melhorou muito a qualidade dos servidores em todas as instâncias. O grande problema é que uma boa parte ainda vem contaminada ideologicamente por um sistema de ensino que sataniza a livre iniciativa e o empreendedor.
Um estado mínimo não dispensará os servidores das carreiras típicas e não prescindirá dos bons servidores.
É nessas horas que eu tenho consciência de cidadania e percebo que nunca fui cidadão. Não é por outra razão que sempre anulo meu voto. O sistema é todo viciado, a constituição protege a corrupção institucionalizada. Quem deveria ter melhorado essa situação seria FHC, que deveria ter conhecimento, caráter e responsabilidade política para tarefa de tamanha envergadura, mas não, o vaidoso foi se preocupar com reeleição e ensinou a lula como subornar o congresso. O artigo é maravilhoso, é pena que seja inútil para convencer tantos canalhas, de que a canalhice não compensa.
ABSURDO. DESCONHECEM A MERITOCRACIA, O ENVOLVIMENTO DAS NECESSIDADES DA PÁTRIA E A PROTEÇÃO POR PESSOAS DE INTERESSES PELOS PARTIDOS. O BRASIL TEM O DNA DA CORRUPÇÃO.
Desculpe-me, mas discordo. Politizar as relacoes pessoais equivale mais ou menos a adaptar uma pessoa obesa a usar as roupas da Gisele Bundchen. A maquina administrativa e quem deve mudar. Reduzir ao Minimo dos Minimos os cargos de confianca. Como vivo na Inglaterra, sei que isso funciona. O governo aqui nao e nada santo, mas se algo relacionado a nepotismo aparece, o politico cai retumbantemente e NUNCA mais se reelege, o povo aqui nao esquece. A unica desculpa aceitavel para se ter parentes em tais cargos e se o parente tem qualificacoes para tanto.
O Boris Johnson (prefeito de Londres, um maluco brilhante) disse uma vez a respeito da crise do euro que os paises da zona do euro estavam combatendo a crise de um jeito totalmente irracional, pois o problema e o euro. Ele disse que as tentativa a desesperadas de salvar a moeda estavam tratando da doenca e nao do doente. E essa e uma boa figura. Politizar relacoes humanas faz com que a doenca fique saudavel, e nao cuida do doente.
DE acordo com o que eu entendi da etrevista de DA MATA . EU acho que o funsionalismo publico nao pertense aos politicosmas sim ao pais so que a sociedade nao encherga isso né.cuando mudaremos essa realidade?
O artigo bem expressa a encruzilhada em que chegamos. Não resta a menor dúvida que 2012 é um divisor de águas para o bem ou para o mal. Com o julgamento do mensalão e seu desdobramento passaremos a ter a devida noção de avanço ou retrocesso da nossa democracia, traduzindo as palavras do Ministro Marco Aurélio Mello, sobre ser ou deixar de ser um país de faz de conta.