É possível que 2011 seja lembrado no futuro como o ano em que o Brasil foi apresentado a uma das grandes miragens da sua história – e, ao mesmo tempo, teve todas as oportunidades de olhar para dentro do abismo que separa as suas aparências e as suas realidades. Na miragem, o Brasil aparece como um caso exemplar de sucesso mundial, uma nova potência capaz de ensinar ao resto do planeta, hoje em dia, a maneira realmente certa de fazer as coisas. Ela é anunciada, sem descanso, pelo evangelho do governo e turbinada pelo que dizem altos burocratas e empresários estrangeiros de passagem por aqui, órgãos internacionais especializados em distribuir normas de bom comportamento econômico e a imprensa escrita em outros idiomas, sobretudo em inglês. No mundo das coisas reais, que pode ser visitado por qualquer cidadão, a qualquer hora do dia e em qualquer lugar do território nacional, há um outro país, com outra alma e outra história a ser contada – e os fatos, nesse Brasil aí, não combinam em nada, ou quase nada, com a ideia de uma nação que enfim acertou a sua vida e virou modelo de virtude.
Não se trata, na verdade, de algo descoberto no ano que agora termina; mais exaramente, é uma prorrogação do espetáculo que o ex-presidente da República montou algum tempo atrás e que, desde então, não saiu mais do ar. Mas foi em 2011 que a visão do Brasil como uma sinfonia do bem e do certo chegou ao seu ponto máximo. Essa nota de aprovação com louvor começa com o julgamento, feito lá fora e também aqui dentro, sobre o desempenho da presidente Dilma Rousseff, às vésperas de completar seu primeiro ano de mandato. Dilma, na opinião da maioria dos que têm algo a dizer sobre ela, é um fenômeno. Um dos motivos mais citados para isso é que o país finalmente tem no seu comando uma presidente duríssima – para começo de conversa, não engole gente corrupta à sua volta e põe na rua, sem dó, quem é flagrado com a mão na massa. Em apenas seis meses, de junho para cá, demitiu seis ministros do seu próprio governo, soterrados por suspeitas de mau comportamento, e um sétimo que parecia infeliz no emprego; no momento, pelas informações disponíveis na praça, parece que há mais dois ou três na rampa de lançamento, prontos para serem despachados rumo ao espaço. Quem, antes dela, conseguiu algo parecido? Não esses bananas que, na avaliação do brasileiro comum, povoam a alta política nacional, e que não têm peito para demitir nem o homem do cafezinho.
O temperamento de pugilista da presidente, visível nas descomposturas que passa em ministros e outros arquiduques da burocracia federal, é mais um traço considerado admirável em sua gestão – no mínimo, é divertido. Acredita-se também, como verdade quase científica, que Dilma é uma das melhores administradoras públicas do mundo, a gerente top de linha que tanta falta vem fazendo ao Brasil desde o governador-geral Tomé de Souza. Para completar, a presidente é uma das peças-chave da crença segundo a qual o Brasil de hoje é um farol para o resto do mundo, com as importantes lições de conduta econômica e social que tem para dar. Gente muito séria, no exterior, está convencida disso. Dilma é descrita como uma heroína dos nossos tempos pelos mais respeitados órgãos de imprensa dos Estados Unidos e da Inglaterra – os que realmente contam na mídia internacional. A presidente fechou 2011, nessa área, com chave de ouro: assina um artigo na celebrada edição de fim de ano da revista inglesa The Economíst, com destaque na capa, propondo o “modelo brasileiro” para as nações desenvolvidas e indicando o que se deve fazer para que o mundo de hoje seja mais bem governado.
O Brasil da fantasia, naturalmente, vai muito além da figura da presidente. No governo e fora dele, insiste-se. por exemplo, que hoje o Brasil está em condições de emprestar dinheiro ao Fundo Monetário Intencional – em vez de pedir, como era comum no passado. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, se mostra particularmente encantado com isso, como revelou, mais uma vez. na recente visita da diretora-gerente do FMI, Christine Lagarde, a Brasília, quando foram trocadas ideias a respeito de uma possível contribuição brasileira de 10 bilhões de dólares para o caixa do fundo. O que mais se poderia querer como prova de que estamos, enfim, entre os grandes deste mundo? Gente de responsabilidade, na área pública ou privada, já vê o Brasil como uma nova China ou se orgulha de sermos pelo menos um Bric. O ex-chanceler Celso Amorim, por exemplo, tem certeza de que os Brics existem, com a mesma fé de quem acredita em disco voador; não admite que essas letras, basicamente, sejam apenas uma abreviatura para designar “Brasil, Rússia, Índia e China”, e que é utilizada pela imprensa para economizar espaço. O ministro Mantega é outro fiel da mesma crença; imagina que vai discutir “com os Brics”, numa decisão “de bloco”, se aqueles 10 bilhões saem ou não. É o novo Brasil, dando as cartas mundo afora.
Já seria suficiente se essa feira de ilusões ficasse por aí, mas ainda temos o PAC, o maior conjunto de obras públicas do mundo. Temos o maior programa de ajuda aos pobres do mundo. Temos as lojas de “grife” que mais vendem no mundo. Temos multinacionais de cerveja, carne de boi e minério de ferro que estão entre as maiores do mundo. Temos cada vez mais bilionários na lista da Forbes. Temos a Copa e a Olimpíada. Temos o empresário Eike Batista. Na Avenida Europa e em sua vizinhança imediata, em São Paulo, olha-se com orgulho para concessionárias Maserati, Ferrari, Lamborghini, Bentley, Aston Martin; promete-se, para breve, uma loja da Rolls-Royce. Ainda em São Paulo, há hoje 500 helicópteros em atividade – é a segunda maior frota do mundo, superada apenas pela de Nova York. A renda per capita em Brasília bate recordes de crescimento. Comenta-se, com reverência, que os preços de muita coisa já começam a ficar mais altos no Brasil do que em Paris, isso para não falar em Miami. Eis aí mais um sinal óbvio de que subimos para a primeira divisão.
Durante o tempo todo, porém, aparecem fatos que recomendam um segundo olhar para cada uma dessas coisas – e quando se olha de novo para elas, e para muitas outras, o que aparece é o avesso. As demissões em série de ministros, por exemplo: todos eles, sem uma única exceção, só foram expulsos do governo porque a imprensa, a começar por esta revista, publicou informações sobre a corrupção maciça praticada ao seu redor. Não houve nenhum caso em que a iniciativa de investigar a roubalheira tivesse partido do Palácio do Planalto; ao contrário, no único episódio em que a sossegada Comissão de Ética Pública, após muita meditação, recomendou que se exonerasse um ministro, a presidente ficou por conta – não com o ministro, mas com a comissão. a quem pediu “explicações”. O resumo da ópera é que todos os demitidos continuariam até hoje em seu cargo se nada tivesse saído na imprensa. Que “pulso firme” é esse? Continua sem explicação, igualmente, uma dúvida primária: se a presidente é a espetacular gerente a quem tanto se elogia, por que raios nomeou nada menos que seis ministros (ou sete, ou oito, ou sabe-se lá quantos) tão ruins assim? Nesse ritmo mandará embora uns trinta, mais ou menos, até o fim do seu governo – coisa para o livro dos recordes, sem dúvida,.
Na verdade, toda essa prosa sobre a competência da presente administração continua sendo um dos grandes enigmas da Idade de Ouro que estaríamos vivendo no Brasil de hoje. Não dá para entender como poderia funcionar bem uma máquina pública cujos níveis de inépcia, corrupção e vadiagem são comparáveis aos dos países mais atrasados do mundo. As evidências disso estão por todo lado. As obras de transposição do Rio São Francisco, como mostrou uma reportagem recente de O Estado de S. Paulo, estão semi-abandonadas, e do pouco que se fez boa parte já começa a virar ruína: até agora não se conseguiu levar uma única caneca d”água para lugar algum. Punições extremas foram anunciadas contra a multinacional Chevron pelo vazamento de óleo que acaba de provocar no litoral do Rio de Janeiro, mas nos últimos dez anos, segundo informou há pouco a Folha de S.Paulo, só uma das 93 multas aplicadas pelo governo nessa área foi paga; todas as outras 92, por sinal, foram dadas a empresas do grupo Petrobras. Um novo terminal do Aeroporto de Cumbica, que deveria ficar pronto neste fim de ano, está com problemas; parte da obra simplesmente acaba de desabar. A “ajuda ao FMI” é uma ficção; o Brasil apenas faz parte de um grupo de quarenta outros países que podem, eventualmente, contribuir com alguma coisa. Os outros Brics não perguntam nada ao Brasil antes de tomar alguma decisão sobre seus interesses. Pode haver, em São Paulo, fachadas da Lamborghini ou da Ferrari, mas, à sua freme, as calçadas são de Porto Príncipe. Metade da população nacional vive sem esgoto – e por aí se vai.
O momento, mais do que nunca, é de aprender e não de ensinar – aprender o que falta para que o Brasil se torne um país mais parecido com a potência que gostaria de ser. O resto é pura ilusão.
Fonte: Veja, 28/12/2011
É uma falácia comparar a prosperidade economia do estado com o bem estar da população, temos um dos impostos mais altos do mundo, mas isso não reflete em serviços públicos de qualidade. O que vemos é um estado paternalista que aliena o cidadão a acreditar no seu potencial administrativo – o que é ilusão,precisamos de mais autonomia por parte do cidadão e que os mesmos passem a ser mais do que meros espectadores da ineficácia da máquina pública, mas sim peças fundamentais para a melhora da mesma.