A onda de revolta que está abalando os países árabes está também colocando em discussão a complacência com que as maiores potências ocidentais lidam com os ditadores da região, a pretexto de prevenir a ascensão de governos radicais islâmicos. Nas ruas do Egito ou da Tunísia, ou da Jordânia, ou do Iêmen, os protestos encontram ressonância numa juventude que aparentemente nada tem de radical e se espelha nas democracias ocidentais, ajudada por uma rede de relacionamento social que não tem fronteiras no Facebook ou no Twitter.
Também começa a tomar corpo, nos meios políticos e intelectuais de países como a França, a ideia de que não há mais condições de aceitar apoiar governos que não levem em consideração os direitos humanos como valor
universal.
O editorial do “Le Monde” de ontem, por exemplo, vai direto ao ponto: “É preciso chamar um ditador de ditador”, é seu título, que reflete esse debate que se instala nos países responsáveis pela sustentação política de ditaduras como as de Mubarak no Egito.
Diz o jornal francês: “Por ter se recusado a apontar publicamente a natureza do regime tunisiano — uma cleptocracia brutal — a França pagará um preço na Tunísia do futuro. Por ter sustentado o regime de Hosni Mubarak, os Estados Unidos estarão na defensiva no Egito de amanhã”.
Os jornais estampam, cheios de culpa, as mansões que a família Ben Ali tem na França, em especial o “hotel particulier” no 16º distrito, ou a da família Mubarak em Londres, como já o fizeram com vários outros ditadores nos últimos anos, provas da leniência com que têm sido tratados nos últimos anos pelos governos europeus e dos Estados Unidos.
Há uma especulação de que o presidente americano Barack Obama poderá aproveitar a ocasião para reafirmar a política de direitos humanos que foi implantada pelo ex-presidente democrata Jimmy Carter, retirando dos republicanos radicais a bandeira de criticar a relação do governo com ditaduras árabes ou a China.
O novo governo brasileiro, por seu turno, está assumindo uma posição de acordo com essa tendência internacional, que deve se aprofundar dependendo do desfecho da revolta popular no Egito.
A proposta oficial brasileira para que a ONU passasse a tratar os países que violam os direitos humanos com mais condescendência, evitando críticas públicas aos regimes autoritários, não foi levada em consideração por aquele organismo internacional e, pelo visto, será abandonada pela nova gestão do Itamaraty, embora o chanceler Antonio Patriota, como secretário-geral da antiga administração, não possa ignorar a iniciativa.
Ele mesmo, no Fórum Econômico de Davos, questionado sobre o fato de que o governo brasileiro nunca havia levantado questões sobre a transgressão dos direitos humanos em países “amigos” como Cuba ou Venezuela, alegou que em alguns momentos agir nos bastidores é mais efetivo, a mesma justificativa da gestão de Celso Amorim.
Mas, como a demonstrar que alguma coisa mudara, Patriota ressaltou que, quando for necessário, o Brasil não se negará a reagir de público contra a transgressão aos princípios democráticos em qualquer país.
A própria presidente Dilma Rousseff afirmou recentemente que não terá nenhum problema em criticar Cuba em caso de violação dos direitos humanos, que ela considera um ponto inegociável para seu governo. Ao usar, e permitir que o governo use, seu exemplo pessoal de ex-torturada para garantir que não transigirá nessa matéria, a presidente Dilma Rousseff está se empenhando pessoalmente nessa diretriz de nossa política externa.
Precisa ainda comprovar suas palavras com ações em relação a Cuba e a Venezuela, mas em relação ao Irã ela já deu provas de que não se deixará levar pelos interesses puramente políticos na questão dos direitos humanos.
A aproximação com o governo de Barack Obama, que visitará o país em março, também demonstra uma mudança de ventos no Itamaraty.
Muito mais que decisões pragmáticas, se abster em votações contra Cuba com relação à violação dos direitos humanos ou mesmo votar contra uma condenação do governo do Sudão sobre Darfur, onde um conflito étnico matou mais de 200 mil pessoas, fazia parte de uma política de Estado que o governo Lula vinha adotando, mudando um padrão de votação no Conselho de Direitos Humanos da ONU, seguindo geralmente interesses geopolíticos e comerciais.
O respeito aos direitos humanos como condição preliminar para o diálogo entre as nações é consensual entre intelectuais e acadêmicos de várias partes do mundo, e prevalece a tese de que eles não podem ser entendidos como instrumentos de dominação ocidental, como muitos governos, como o da China e vários países árabes, tentam caracterizá-los.
A identidade coletiva é uma característica do mundo atual, e o sociólogo Renato Janine Ribeiro chama a atenção para o fato de que a necessidade de pertencimento a um grupo está muito presente hoje, e, mais do que significar uma escolha individual, significa que a identidade coletiva precede toda forma de liberdade.
Em vez do cartesiano “penso, logo existo”, a definição seria “nós somos, logo eu sou”. Ou “eu pertenço a esse determinado grupo porque livremente o escolhi”.
Seria esse o renovado conceito de relações sociais trazido pelos novos meios de comunicação que viabilizou as manifestações em diversos países do mundo árabe, o que caracterizaria a origem espontânea, fora dos partidos políticos tradicionais, das revoltas da Tunísia e do Egito.
O difícil é identificar neste momento se esse movimento espontâneo terá força política suficiente para levar adiante a mudança, e se dele surgirá um líder que possa negociar com as demais forças políticas.
Ou se os movimentos políticos mais organizados se aproveitarão do momento para assumir o vácuo de poder que uma eventual saída de Mubarak deixará. Por isso, os países europeus, e principalmente os Estados Unidos, querem controlar uma transição política, para ter garantias de que a substituição não mudará os rumos do Egito no Oriente Médio.
Fonte: O Globo, 03/02/2011
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