O Investimento Direto Estrangeiro (IDE) é de longe a maior das forças promotoras da globalização, pois é o que inclui os países nas redes de produção internacional, de movimentação de fatores de produção e de tecnologia. Os fluxos de IDE para o Brasil subiram de US$ 26 bilhões em 2009 para patamares superiores a US$ 65 bilhões nos anos posteriores a 2011, números que podem dar a impressão de uma vigorosa trajetória de inserção da globalização, ou de aceleração no processo de formação da capital.
Nada mais enganoso: como não temos políticas destinadas a aprofundar nossos vínculos globais – pelo contrário, há tempos praticamos políticas industriais e de comércio exterior nacionalistas ou mesmo interioranas – e a formação bruta de capital permanece estagnada, não há outra explicação para o surto de IDE que não a política monetária dos países desenvolvidos.
Não se trata de questão simples de arbitragem: nunca foi tão atrativo para as empresas multinacionais alavancarem-se para adquirir ativos ou expandir atividades no Brasil e em outras economias emergentes as quais, ainda que problemáticas, exibem melhores perspectivas de crescimento que as economias desenvolvidas. Nossas autoridades deviam mostrar gratidão a Ben Bernanke ao invés exibir da tola malcriação bem resumida pela expressão “guerra cambial” que celebrizou o nosso ministro nos círculos terceiro-mundistas.
É nesse contexto que o Banco Central publica os resultados do quarto censo quinquenal do Capital Estrangeiro no Brasil, feito para o ano-base 2010. Trata-se de extraordinário trabalho de pesquisa, realizado com grande diligência e competência, que nos revela uma surpreendente transformação para os 15 anos posteriores a 1995: um país cosmopolita e internacionalizado e que estaria a requerer políticas públicas adaptadas para esta realidade singular e estranha à ideia de um país continente e ainda hipnotizado com o mito da autossuficiência.
O censo é um questionário destinado a todas as empresas brasileiras que, na data de referência, possuíssem um mínimo de 10% de participação acionária de não residentes no capital votante, ou de 20% sobre o capital total. Obedecido este conceito, o censo de 1995 teve 6.322 respondentes. Eles foram 11.404 em 2000 e 17.605 em 2005, mas em 2010 o número se reduz para 16.844 em razão de uma alteração metodológica com vistas a melhor retirar dessa amostra o chamado investimento em carteira. Dessa maneira, também foi possível determinar com mais precisão o número de empresas receptoras de IDE, considerando as cadeias de controle: exatas 13.858 empresas recebendo US$ 587,2 bilhões em capital e mais US$ 82,8 bilhões em empréstimos intercompanhias, totalizando US$ 670 bilhões, equivalentes a 31% do PIB brasileiro.
Este é o tamanho do capital estrangeiro de natureza empresarial no Brasil, a maior parte do qual chegando depois de 1995, quando o estoque de IDE no Brasil era da ordem de US$ 40 bilhões e o número de empresas recebendo IDE podia ser estimado em cerca de 4.700. Durante os 15 anos seguintes foram cerca de 9 mil novas empresas trazendo US$ 630 bilhões – algo como 2 empresas e US$ 150 milhões a cada dia útil!
Essa invasão de capital estrangeiro produtivo no Brasil não encontra precedente e coloca em questão as definições habituais de abertura e inserção externa, eis que representa um envolvimento muito mais profundo com a economia global do que os diminutos graus de abertura comercial do Brasil poderiam sugerir. Certamente temos aqui um curioso, mas não inusitado paradoxo: a internacionalização da economia parece ocorrer em consequência de práticas protecionistas que fazem com que o IDE “substitua” comércio, tal como no caso clássico da Europa do pós-guerra. É o nacionalismo, via substituição de importações, que sai pela culatra.
Para o ano de 2010, o leitor terá ouvido que o fluxo de IDE naquele ano alcançou US$ 48,5 bilhões, ou seja, representou uma injeção de capital de aproximadamente R$ 85,3 bilhões em empresas com sede no Brasil. Com esse acréscimo, o conjunto das 13.858 empresas do censo fechou o ano com um patrimônio total de R$ 974 bilhões, dos quais R$ 819 bilhões (84%) de titularidade de não residentes. Essas empresas tinham ativos de R$ 2,4 trilhões e faturamento de R$ 1,6 trilhão, respectivamente 65% e 42% do PIB, e eram responsáveis por 38% das exportações totais do País e 43% das importações em 2010.
Em 2010, as 13.858 empresas do censo empregavam 2,3 milhões de pessoas, representando apenas 2,4% da população ocupada, como tem se observado nos censos anteriores. Com base na relação entre valor bruto da produção e valor adicionado, é possível estimar que o valor adicionado produzido pelas empresas do censo contribua para o PIB brasileiro com cerca de um quarto de seu valor. Parece óbvio, portanto, que existem dramáticas diferenças de produtividade entre essas empresas e o restante do País: para 2010, enquanto um trabalhador de uma das empresas do censo gerava R$ 397 mil de valor adicionado em média, para o restante da população ocupada o número era de R$ 31 mil, ou menos de um décimo.
Contrastes semelhantes se observam no terreno do comércio exterior: enquanto um trabalhador ocupado em uma empresa do censo produzia cerca de US$ 38 mil em exportações, outro em outras empresas brasileiras produzia US$ 2,4 mil em exportações em média. As exportações brasileiras representavam 6,5% do PIB em 1995, subiram a 14,7% em 2005 e caíram a 10,5% em 2010. As empresas do censo exportavam 16% de seu faturamento em 1995, chegaram a 22% em 2005 e caíram a 17% em 2010, porcentuais bem maiores que os observados para outras empresas brasileiras e provavelmente determinantes para o coeficiente de abertura comercial do País.
Os contrastes entre empresas do censo e as outras empresas brasileiras são fáceis de se exagerar, pois seria preciso “descontar” outros fatores que podem explicar alta produtividade e propensão ao comércio, como tamanho, concentração, formalização do trabalho, entre outros. Mas, mesmo com esse benefício concedido à dúvida, é difícil evitar a impressão de que as empresas com conexões relevantes com a economia globalizada têm sido a locomotiva de crescimento e para o comércio exterior do país na primeira década e meia depois do Plano Real, mesmo sem terem sido objeto de nenhuma política pública específica. De muitas maneiras, a globalização é como a internet: as possibilidades são infinitas, sobretudo se as autoridades encaram o assunto com o espírito aberto e sem o cabotinismo ideológico dos últimos anos.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 28/07/2013
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