Certa vez, um cientista argentino, em algum dos momentos em que um dos governos autoritários da nação vizinha pressionava para falar bem do país, disse que “eu poderia subornar um poeta para escrever sobre minha longa cabeleira, mas o fato é que com isso não ganharia um único cabelo” (o personagem em questão era inteiramente calvo).
A frase vem a calhar em momentos em que é preciso ser realista, quando o Governo torce pela perspectiva de termos um crescimento maior que o do ano passado e insinua que o maior crescimento do PIB esperado para este ano em relação a 2012 seria o prenúncio da recuperação do espírito reinante até 2008, antes da crise posterior do baixo crescimento – noves fora o “ponto fora da curva” do crescimento excepcional de 2010
Infelizmente, a realidade é mais complicada do que o discurso otimista permite supor. Para entender o processo em curso, é necessário retroagir a 1999. Naquele ano, o país fez uma das inflexões de política econômica mais importantes do pós-guerra. Em um contexto externo adverso, foi feito um ajuste expressivo, sem que a inflação escapasse ao controle, sem que a economia mergulhasse em queda livre e sem “calote”, nem interno nem externo. Foi um caso exemplar. Ajuste, porém, dói – e leva a popularidade dos Governos ladeira abaixo. Para entender por que Fernando Henrique era impopular em 2002, basta acompanhar a trajetória do consumo naqueles anos – e para entender por que a popularidade do Governo Lula não era uma “Brastemp” em 2003 e 2004, também. Em cada um dos 5 anos de 2000 a 2004, tanto o consumo total como o consumo das famílias, nas Contas Nacionais do IBGE, cresceram abaixo do PIB. Naqueles cinco anos, ocorreu uma mudança macroeconômica maiúscula: a poupança doméstica elevou-se mais de 6% do PIB e o Brasil fez um ajuste externo de quase 6% do PIB. De 2005 em diante, esse quadro sofreu uma mudança completa: a partir de então, em linhas gerais, o consumo total e o consumo das famílias cresceram a taxas superiores às do PIB, a poupança doméstica caiu e o resultado das transações correntes com o exterior deteriorou-se lenta e persistentemente, apesar dos preços internacionais exuberantes.
O que se tem dito dos gregos? “Viveram anos às custas do resto do mundo”, “não aproveitaram o bom momento para fazer reformas” e “gastaram graças ao financiamento dos alemães”. As diferenças entre as economias grega e brasileira são enormes, mas peço ao leitor que preste atenção nas taxas reais de crescimento anual médio das exportações e importações nas Contas Nacionais: 11,2% e 2,2%, respectivamente, nos anos de ajuste entre 1999 e 2004; e 3,4% e 11,9% nos anos da “farra consumista” entre 2004 e 2012. Já nos primeiros 5 anos, o crescimento anual do consumo das famílias foi de apenas 1,9% e nos 8 anos posteriores, de 5,0%. A conclusão é cristalina: os deuses sorriram para o Brasil. Preços das exportações nas nuvens e capital internacional abundante no contexto de juros externos no subsolo geraram um “apetite por risco” fenomenal, disposto a financiar qualquer desequilíbrio nos países emergentes para garantir melhores rendimentos que os que poderiam ser obtidos nos países centrais.
Vivemos um paradoxo. As políticas que permitiram uma expansão expressiva do consumo – no Governo atual e no anterior – explicam a popularidade de Lula e, até recentemente, da Presidente Dilma, ao mesmo tempo em que a manutenção dos rumos prevalecentes nesses anos é garantia de problemas futuros. É preciso introduzir ajustes na economia, para que o consumo cresça durante vários anos a taxas inferiores às do PIB e assim permitir ganhar espaço para uma ampliação da taxa de investimento e um aumento dos saldos exportáveis. “Ajuste” está longe de ser “arrocho”, mas implica tirar o foco do consumo como o eixo em torno do qual se estruturam as políticas governamentais. Há alguns sinais disso em 2013, quando o investimento aumentou no primeiro semestre do ano. Infelizmente, isso se dá em um contexto em que nossa competitividade péssima faz com que mais investimento gere mais déficit na conta corrente. Sem um mix adequado de políticas, o risco que corremos é voltar a ter déficits de 4% a 5% do PIB. Estamos pagando a conta de anos de consumismo.
Fonte: O Globo, 08/07/2013
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