Uma das maiores dificuldades e fonte de grande controvérsia é entender quais são os determinantes para que um país realize a transição para o desenvolvimento. Raros são os casos de países que conseguiram fazer essa façanha nos últimos 50 anos. De acordo com o Banco Mundial (2012: 98), dentre 101 países com PIB per capita médio (entre US$ 10.000 e US$ 20.000) em 1960, apenas 13 conseguiram fazer tal transição: Guiné Equatorial, Grécia, Hong Kong, Irlanda, Israel, Japão, Ilhas Maurícios, Portugal, Porto Rico, Coreia do Sul, Singapura, Espanha e Taiwan.
Apesar da falta de uma teoria definitiva que nos ajude a compreender toda a complexidade de uma transição dessa magnitude, não se aceita mais o argumento defendido pela hipótese da convergência, de que o tempo é o fator decisivo para que haja a migração de países em desenvolvimento para o seleto grupo de países desenvolvidos. Na realidade, sempre existe dúvida se um determinado país estaria de fato fazendo essa transição ou se, diferentemente, estaria vivenciando apenas um período episódico de boa performance econômica. Evidências a favor da hipótese da convergência foram encontradas apenas quando variáveis institucionais foram levadas em consideração. Ou seja, países pobres podem convergir na direção dos países ricos apenas quando condicionados por variáveis relacionadas à qualidade das instituições políticas e econômicas, tais como direitos de propriedade, governança democrática, controle da corrupção, qualidade da burocracia, liberdade econômica etc. O que essas abordagens enfatizam é que embora países pobres possam até apresentar crescimento econômico em ambientes de tibieza institucional, este não seria de longo alcance e nem sustentável ao ponto necessário para que países façam a transição para índices mais altos de desenvolvimento.
O grande problema então é: como julgar se a performance que um país apresenta é apenas episódica (barulho) ou sustentável (sinal)? Ou seja, como poderíamos ter certeza que um país está fazendo a transição? O problema fica ainda de mais difícil solução quando as informações e evidências disponíveis são compatíveis com ambas possibilidades. Em manuscrito, ainda não publicado, escrito em parceria com Lee Alston, Marcus Melo e Bernardo Mueller intitulado “The Road to Prosperity: Beliefs, Leadership and Windows of Opportunity; Brazil 1960-2010”, argumentamos que o Brasil, ao passar por transformações profundas em direção a uma sociedade mais inclusiva do ponto de vista econômico e social na década de 90, está no trilho para o desenvolvimento.
Esta afirmação parece suspeita, em função, por exemplo, do fraco desempenho econômico, abaixo da média mundial, que o Brasil apresentou não apenas neste ano, mas desde a década de 80. Diante dessa performance desapontadora, o Brasil não seria um candidato óbvio para realizar a transição para o distinto grupo de países desenvolvidos. Outros indicadores são igualmente desalentadores: em 2011 o Brasil foi ranqueado em 85º lugar dentre 187 países, segundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das Nações Unidas; a classificação do Banco Mundial sobre “facilidade de abertura de negócios” (Doing Business) ranqueou o Brasil em 126º lugar dentre 183 países, em 2011; de acordo com o índice Economic Freedom da Fundação Heritage, Brasil foi classificado na categoria mostly unfree, sendo ranqueado em 99º lugar dentre 179 países, em 2012; em 2010 a Transparência Internacional, por meio do seu Índice de Percepção de Corrupção, ranqueou o Brasil em 73º lugar dentre 182 países; em 2012, a Report Without Borders classificou o Brasil em 99º lugar dentre 179 países em relação à liberdade de imprensa. Esses são indicadores que certamente deixariam o Brasil distante de ser um candidato a país em transição para o desenvolvimento.
Seria ingenuidade, entretanto, esperar que um país em transição ou em rota para o desenvolvimento apresentasse, de forma simultânea e uniforme, melhoras consistentes em todas as áreas de política. O processo de desenvolvimento é necessariamente confuso e descontínuo e acima de tudo contextual, e nenhuma combinação de indicadores pode fornecer sinais claros e inequívocos se um país está em transição de fato. Vale salientar que muitos desses indicadores são baseados em percepções, logo refletem avaliações de performance que podem variar bastante com o tempo, espelhando determinantes cíclicos ao invés de estruturais ou institucionais. Além do mais há outros indicadores nos quais o Brasil aparece com um desempenho excelente: em 2009 foi ranqueado em 10º lugar, dentre 133 países, no que diz respeito à higidez do sistema bancário (soundness of banks), de acordo com o World Economic Forum; The Hague: Action Aid International ranqueou o Brasil em primeiro lugar dentre os países em desenvolvimento na luta contra a fome; de acordo com o SCImago Journal and Country Rank, o Brasil aparece em 15º lugar dentre 236 países quanto ao número de documentos publicados em periódicos científicos entre 1996 e 2010. Por estranho que pareça, dependendo da preferência do leitor, será possível encontrar no “Countries of the World” (www.photius.com/rankings/) um ranking que satisfaça argumentos de diferentes matizes e gostos.
Diante da pletora de rankings e índices, o fundamental seria então um olhar mais atento para a capacidade que as instituições brasileiras têm em gerar cooperação entre os atores políticos e os agentes econômicos. O presidencialismo multipartidário brasileiro tem propiciado equilíbrio e estabilidade. O Executivo não mais enfrenta problemas de governabilidade e a cooperação com o Legislativo é a regra, não mais a exceção. Um rápido olhar para o passado mostra que hoje, ao contrário da democracia vivida entre 1946 e 1964, o país conta com um presidente constitucionalmente forte – com poder para emitir medidas provisórias com força de lei, além de capacidade de vetar, total ou parcialmente, projetos de lei -, o que lhe dá mais chances para controlar agendas junto ao Congresso Nacional. Somando-se a isso, o Executivo tem significante poder orçamentário. Apesar de o Legislativo votar o orçamento anual e fazer emendas a ele, cabe ao Executivo executá-lo. É aí que se localiza o lubrificante dessa engrenagem: como tem discricionariedade sobre o que vai e o que não vai ser executado, o governo federal usa esse poder de forma estratégica, executando de forma menos incisiva as emendas ou projetos de seus opositores. A sustentabilidade e equilíbrio do sistema político brasileiro, se deve em parte a esse jogo. Desse modo, o presidente não apenas possui poderes de agenda, mas dispõe de ferramentas para atrair partidos políticos para sua base. Depois de 1988, os presidentes têm sido capazes de construir coalizões majoritárias pós-eleitorais utilizando ferramentas de trocas institucionais com os partidos e, assim, sustentar coalizões ao longo do tempo.
Em que pese a dominância do Executivo no jogo político, a rede de instituições de controle e “accountability” (Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas, mídia etc) tem exercido um papel fundamental no monitoramento de suas ações e restringindo desvios. Tem-se, por exemplo, testemunhado a grande independência do Supremo Tribunal Federal (STF) ao impor perdas gigantescas, não só reputacionais, mas judiciais, para uma elite política, ao tempo em que essa elite ainda está no poder. Na realidade, não existe nenhuma experiência democrática no mundo em que isso tenha ocorrido. Quando ocorrem, punições de políticos corruptos são ex post, como se deu na França, com Jacques Chirac, julgado e condenado anos após ter exercido a presidência. Fator ainda mais notório e sinal de maturidade institucional é o fato de que a maioria dos juízes do STF foram indicados por governos do mesmo partido político associado ao escândalo.
O grande desafio do atual governo para os próximos dois anos é reiniciar as reformas estruturais orientadas para manter, ou mesmo para acelerar, o país em sua rota de desenvolvimento. É importante reconhecer que, embora apresente um viés estatizante e em alguns momentos intervencionista podendo eventualmente levar a retrocessos institucionais, o governo tem se esforçado em tentar reverter problemas e políticas pontuais, como por exemplo, diminuir impedimentos à realização de investimento privado em infraestrutura. O governo tem também procurado manter a disciplina fiscal e o controle inflacionário, tem tentado reverter a tendência do déficit público trazendo-o para níveis mais gerenciáveis, o Banco Central tem diminuído a taxa de juros em mais de 5,25 pontos percentuais (apenas dois pontos acima da inflação). Além disso, é importante lembrar que o governo diminuiu os impostos para trabalhadores da indústria e ultimamente tem procurado estimular investimentos em aeroportos e estradas.
Todas essas iniciativas são, entretanto, de políticas de ajustes e correções, mas não correspondem a reformas estruturais, tais como tributária, sindical, trabalhista, educacional, da saúde, da infraestrutura etc. É sabido, por exemplo, que reformas do mercado de trabalho, visando diminuição da sua rigidez, são fundamentais para evitar que países sejam aprisionados em armadilhas de crescimento de renda média. Portanto, o atual governo não pode continuar seguindo a estratégia conservadora de seu antecessor, sem realizar reformas estruturais, evitando gastar capital político e mantendo o país em uma espécie de equilíbrio sub-ótimo.
Até quando os benefícios e frutos provenientes das reformas estruturais implementadas década de 90, que colocaram o Brasil na rota da boa governança, subsistirão sem que haja novas reformas? Pois, uma vez no trilho institucional virtuoso, não existem certeza nem garantias de que o país não possa vir a descarrilar. A Argentina é um exemplo paradigmático de país que, no início do século XX, era considerado a sexta maior economia do mundo e, por uma série de decisões que fragilizaram a credibilidade de suas instituições, descarrilou.
A partir daí, deflagrou-se uma sucessão de ciclos viciosos e hoje a Argentina é considerada uma nação perdida no seu passado. Países já desenvolvidos também podem descarrilar. Os Estados Unidos, o maior símbolo exportador de valores democráticos e da defesa dos direitos humanos autorizou, pouco tempo atrás, o uso de tortura em presos considerados terroristas sob a alegação e justificativa da segurança nacional.
O maior legado que a presidente Dilma Rousseff poderia deixar seria então afastar qualquer dúvida sobre barulhos, ou seja, performances não sustentáveis em longo prazo. O governo ainda tem tempo suficiente para estabelecer condições para que a atual fase de desenvolvimento do país soe como um sinal crível de que os caminhos não mais se dissiparão em equívocos ou hesitações governamentais, uma vez que estão presentes reais condições institucionais para que o Brasil continue seu caminho virtuoso.
Fonte: Valor Econômico, 19/12/2012
Se for fazer reformas estruturais, terá que comprar votos, e aí.