Entre as expressões que ouvimos vez por outra nas ruas cubanas, uma resume com perfeição até que ponto é possível ferir os interesses individuais. Por exemplo, basta dizer “pisar nos calos de alguém”, para que todos saibam que um indivíduo foi tocado naquela parte do seu corpo que o fará pular, proteger-se e passar para a ofensiva. Entretanto, esse mesmo cidadão muito provavelmente ficou calado quando pisou nos calos de outros. Somente a dor que ele sentiu na própria carne o fez reagir. É uma espécie de ABC do comportamento humano, mas que em certas circunstâncias pode converter-se no egoísmo de alguns setores sociais.
Há meses, Raúl Castro desencadeou uma intensa luta contra determinadas ilegalidades que acabou se tornando um enorme pisão nos calos de quem, até então, tinha seus pés bem resguardados. Milhares de inspetores estão nas ruas, os talonários de multas se acabam a uma velocidade inusitada e a sensação geral é que a polícia pode chegar a qualquer momento. Revendedores, comerciantes de esquina, famílias que fazem reformas em suas casas, pessoas que trabalham por conta própria e produtores agrícolas são o alvo das fiscalizações. Ninguém escapa. Vestidos à paisana ou uniformizados, os soldados desse novo exército reforçam a sensação de permanente vigilância.
Ao contrário de outras batidas anteriores, esta afeta praticamente a totalidade da população cubana. A ponto de alguns comentarem que o governo declarou guerra ao povo. Trata-se de uma cruzada que quebra um pacto social tácito, frágil, mas determinante para a sobrevivência do atual sistema. Certo grau de permissividade com a corrupção, o mercado negro e o desvio de recursos funcionaram durante décadas como um mecanismo de controle político. Fingir-se adepto ideológico do regime tem sido a condição indispensável para conseguir defraudar, roubar e adulterar sem graves represálias. Entretanto, gritar Pátria ou Morte para afastar inspetores e policiais já não está dando tantos resultados. O pisão no calo afeta mesmo os que se declaram publicamente fiéis seguidores do Partido Comunista. Embora – vale a pena declarar – nem todos os calos sejam iguais, ninguém pisa em certos pés.
Com esta nova ofensiva, o governo de Raúl Castro enfrenta uma queda cada vez maior de sua popularidade. É certo que, se analisarmos os atos ilegais punidos, perceberemos que são ética e juridicamente inaceitáveis e cidadão algum que respeitasse o rígido código penal cubano conseguiria sobreviver. Tolerar certo grau de transgressão constitui um aspecto inseparável do aparato de repressão do totalitarismo. Entre os governantes e os governados se estabelece um acordo tácito que significa ceder certa impunidade em ambas as direções.
Em um país no qual o próprio presidente foi obrigado a reconhecer que o salário não é a principal fonte de renda, as autoridades sabem que endurecer contra os meios paralelos de subsistência torna-se, com o tempo, um suicídio político. O contrato – não escrito – pelo qual os cidadãos fingem que trabalham enquanto os governantes fingem remunerá-los, está em crise. A luta contra a corrupção e a indisciplina afetou um setor politicamente dócil, mas muito amplo em termos numéricos.
Há alguns dias, um vendedor ambulante de doces, até pouco tempo fiel seguidor da política oficial, aproximou-se de um ativista dos direitos humanos. Num repente, afirmou: “Quero fazer algumas declarações”, deixando atônito o dissidente, que o considerava um homem do Partido Comunista. Ocorre que os impostos excessivos e as multas constantes fizeram o vendedor mudar de ideia. “Não posso mais parar numa esquina para oferecer meus doces porque os inspetores dizem que, como sou ambulante, preciso me movimentar o tempo todo”. Parte do absurdo que predomina em toda a campanha estatal pode ser percebido também nestas batidas contra o que está errado.
Por exemplo, também pisaram no calo de Catalina, quando a polícia exigiu que ela apresentasse os recibos do cimento e dos ladrilhos usados na reforma de sua casa. Dada a origem ilegal de todos esses itens, ela optou por oferecer uma propina ao funcionário para que esquecesse do assunto porque a luta contra a ilegalidade não conta com a necessidade de supervisores, fiscais e policiais também precisarem sobreviver.
Tudo tem um preço. Deixar de cumprir uma exigência da saúde pública em um restaurante de fast-food custa ao proprietário entre 200 e 300 pesos conversíveis (R$ 440 a R$ 660). Um inspetor do instituto da habitação é conhecido como Johny 1500 por impor multas desta quantia, com o intuito de que a pessoa multada lhe ofereça uma “mordida” de pelo menos a metade do total. A ofensiva anticorrupção leva a novas formas de corrupção.
Por enquanto, o alarme se multiplica, os mecanismos de alerta contra possíveis fiscalizações e registros tornam-se mais sofisticados. Quando os vilões chegam num bairro ou num local de trabalho, o alerta é transmitido a todos. Os fiscais se apresentam armados com calculadoras, talonários, carimbos e código penal, dispostos a pisar nos calos – em muitos calos de uma vez. Entretanto, a cada pisão o sistema castrista pode estar perdendo um par de pés, muitos pés nos quais deveria se apoiar.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 25/09/2013
Não é diferente aqui em solo pátrio brasileiro. Esses exércitos com afazeres semelhantes ao de Cuba são lançados contra à sociedade pois, nem sempre cumprem seus deveres constitucionais, e em “muitos casos pregam dificuldades, para venderem facilidades!” E os governos em todos seus níveis, pregam a Transparência mas, não exercitam às prestações de suas contas públicas, na forma de fácil compreensão e entendimento pelos Contribuintes.