Diz a lenda que existem coisas que só dão no Brasil, como a jabuticaba. Não é verdade, mas quando a lenda é melhor do que a realidade, publique-se a lenda, como dizia aquele personagem de “O Homem que Matou o Facínora”, de John Ford.
A jabuticaba pode ser uma lenda, mas um deputado condenado e preso por corrupção ter o seu mandato mantido pelo voto secreto de seus pares (para ser gentil e não chamá-los de comparsas), certamente deve ser uma primazia e uma contribuição original brasileira para o livro “Guinness”.
Mas não é uma contribuição singela que começa e termina em si própria. Ela tem requintes que uma pessoa normal teria dificuldade em explicar a um colecionador de aberrações políticas universais: o próprio condenado compareceu à sessão que manteve o seu mandato e pôde votar, e com toda certeza o fez em causa própria, a não ser que além de larápio, seja maluco.
Mais ainda: esse centauro de três cabeças que só a criatividade da política brasileira foi capaz de construir, teve o toque artístico de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, que levou ao pé da letra a disposição constitucional segundo a qual só o Legislativo pode cassar o mandato de seus membros.
Acontece que existe outra disposição constitucional, essa ignorada pela maioria do colegiado do STF, segundo a qual a condenação transitada em julgado cassa automaticamente os direitos políticos do condenado — e supõe-se que entre esses direitos esteja o de legislar.
O nosso centauro de três cabeças, então, não tem direitos políticos mas pode fazer leis.
Num acesso inevitável de pudor, o presidente da Câmara Federal resolveu fazer o possível para amenizar o escândalo, e chamou o suplente para assumir o cargo do deputado preso mas não cassado.
Uma pergunta inevitável: se o voto dos deputados fosse aberto e não secreto, os que votaram contra a cassação e os que sorrateiramente fugiram do plenário para ir lavar as mãos na bacia de Pôncio Pilatos, teriam coragem de fazer isso?
Outra pergunta também inevitável: o presidente da Câmara terá a coragem, doravante, de expulsar manifestantes invasores do plenário clamando que “esta é uma casa de respeito”?
E, por fim, a mais inevitável e óbvia das perguntas: os deputados sabem que boa parte das pessoas que saiu às ruas em junho para protestar contra ônibus, estádios e etc., também estavam revoltados contra a falta de vergonha dos políticos?
Se alguns manifestantes se excederam depredando bens públicos, lojas, bancos e quebrando vitrines, puderam ser chamados de vândalos — como foram — seria possível evitar a constatação de que o que os deputados praticaram uma espécie mais sutil mas não menos nociva de vandalismo?
Manter o mandato do deputado Donadon foi, sim, um ato de vandalismo moral.
Fonte: Blog do Noblat (Globo Online)
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