À primeira vista, a repressão aos consumidores e vendedores de drogas na região central da cidade de São Paulo conhecida como cracolândia se resume à questão: adotar o método da tolerância zero, praticado pelos Estados Unidos e que consiste na retirada forçada das ruas de dependentes e traficantes, ou implantar o sistema europeu, usado por países como França, Espanha e Holanda, permissivo e que comporta até um padrão de consumo de drogas considerado não tão prejudicial? A par das evidências de que a ação policial pecou pela ausência de articulação entre as instâncias federal, estadual e municipal, escancara-se a hipótese de que a pirotecnia, que agradou aos moradores das regiões invadidas, se assemelha à prática de enxugar gelo. Os viciados tentarão conseguir a droga em outras regiões, ajudando criminosos do narcotráfico a conquistar novos territórios. Enquanto houver demanda, haverá oferta. E a experiência tem demonstrado que a abstinência forçada da droga não tem diminuído o contingente de viciados. Nos EUA, apenas 30% dos dependentes conseguem abandonar o vício.
O affaire paulistano indica a necessidade de o País substituir medidas improvisadas por consistentes programas de prevenção e reinserção social, o que se faz absolutamente premente ante este dado estarrecedor: o crack pode ser encontrado em 98,7% dos municípios brasileiros. A cada ano se expande a estética da degradação que acolhe os usuários em praticamente todas as regiões do Brasil. Ao contrário do que se supõe, o balão das drogas infla mesmo sob pressão de programas desenvolvidos por uma pletora de órgãos, fóruns, entidades e movimentos espalhados pelo território. O tráfico não dá sinais de que reflui.
Não se trata, porém, de uma característica brasileira. Redes governamentais, agências e organizações internacionais que atuam na vanguarda e na retaguarda das batalhas contra as drogas não têm conseguido sustar as redes de corrupção e os polos de irradiação do narcotráfico, controlados por financiadores, transportadores e agentes que comerciam um dos negócios mais rentáveis do planeta.
Infelizmente, o Brasil tornou-se espaço estratégico do esquema. Desde o início dos anos 1990, quando os EUA passaram a controlar a região do Caribe, o País foi escolhido pelos cartéis para ser, inicialmente, rota de trânsito, ao lado da Europa Oriental, da zona ao sul e ao leste do Mediterrâneo, do México e de países africanos. Depois ganhou a posição de entreposto para estocagem, produtor de drogas (incluindo centros de processamento de folhas de coca e laboratórios para refino de cocaína) e plataforma de exportação.
Essa é a explicação para o fato de, por estas plagas, a indústria da droga crescer em progressão geométrica, enquanto o aparato de combate caminha em progressão aritmética. O País já ocupa o segundo lugar no ranking mundial de lavagem de dinheiro apurado pelo narcotráfico na América do Sul. A questão, portanto, é muito mais grave que a leitura que se extrai da polêmica sobre as cracolândias do arquipélago nacional.
Os polos de consumo de drogas integram um gigantesco empreendimento internacional, cujas conexões envolvem sistemas bancários (nacionais e internacionais), empresas farmacêuticas, meios de transporte intermodais, estruturas de Estado, organizações políticas e partidárias, forças policiais, subindo ao sagrado altar do Judiciário. Pode parecer exagero. Estudiosa da matéria, Lia Osório Machado, em documento sobre O comércio ilícito de drogas e a geografia da integração financeira: uma simbiose?, mostra que parcela ponderável do PIB mundial deriva do comércio ilegal de drogas. O lucro do crime transnacional é da ordem de US$ 1 trilhão, do qual parcela considerável (podendo chegar a US$ 500 bilhões) é processada pelo sistema bancário mundial após a “limpeza” nas lavanderias de dinheiro. Aliás, o combate à lavagem de dinheiro é o centro da luta contra o narcotráfico, a partir dos EUA.
Não é de admirar que esse portentoso empreendimento, que cria um Estado informal dentro do Estado formal, seja capaz de alterar a fisionomia geográfica e populacional de países, contribuindo para a expansão de cidades médias, alterando o mapa da distribuição de habitantes via fluxos migratórios e influindo na condução dos poderes locais e regionais. Parte dos lucros é estocada em bancos subterrâneos, seja para financiar programas sociais, seja para alavancar obras de infraestrutura, e outros recursos são destinados ao financiamento de guerras e movimentos de terror. Os domínios da drogalândia são tão largos que se chega a apontar, em certos territórios, a participação de narcodivisas no incremento de reservas cambiais, contribuindo para ajustar políticas monetárias, bancárias e financeiras de governos periféricos.
Insira-se essa engrenagem na moldura das economias transnacionais, adicione-se a paisagem dos “paraísos fiscais” e, assim, se chega facilmente à conclusão de que um espaço continental como o Brasil, com 16,8 mil quilômetros de fronteiras (7 mil de fronteiras secas e 9,8 mil de fronteiras de rios), constitui alvo central para o império da droga. Sob esse formato, nosso mapa ultrapassa a geografia sul-americana, conectando-se a superfícies intercontinentais. Com essa preocupação, o governo brasileiro determinou prioridade para o Plano Estratégico de Fronteiras, que em seis meses apreendeu cerca de 115 toneladas de maconha e cocaína.
Ter controle sobre o território, eis a condição sine qua non para o Brasil armar sua política de combate às drogas. Outros verbos são fundamentais nesse processo: coordenar, integrar, flexibilizar, harmonizar, dinamizar. Das funções que deles se extraem dependerá a eficácia das ações. Claro, os programas devem fluir harmoniosos e bem articulados entre as instâncias federal, estadual e municipal. Só assim serão capazes de evitar o espetáculo pirotécnico que se viu na cracolândia paulistana.
Fonte: Estadão, 15/01/2012
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