Como se não bastasse o que despertou em junho de 2013, e transformou a Copa das Confederações numa espécie de maio de 1968, há outro gigante acordado, na verdade dois deles.
O gigante americano parecia prostrado desde a crise de 2008, mas contrariando muitos prognósticos, e depois de muito esforço para arrumar a casa, a recuperação americana vem provocando um banho de sangue nas moedas, títulos públicos e commodities, especialmente em mercados emergentes. Trata-se apenas de uma reação inicial, talvez exagerada, talvez modesta, não há como dizer, à normalização da política monetária americana; um exemplo extraordinário da máxima segundo a qual, nos mercados financeiros, boas notícias são sempre más notícias para muita gente.
Firmou-se a sensação de que há uma data para acabar a abundância de liquidez de que se beneficiou amplamente o Brasil nos últimos anos. Tolamente, confrontamos as políticas do Fed (banco central dos Estados Unidos) com a tese da “guerra cambial”, um raciocínio conspiratório segundo o qual os americanos estavam desvalorizando deliberadamente a sua moeda para ficarem mais competitivos do que nós. Como se eles precisassem disso! Curioso que no botequim em Havana, Caracas ou Campinas, onde essa gracinha foi inventada, nada semelhante fosse dito sobre a China, que o Brasil trata generosamente como uma “economia de mercado”.
Nosso ministro da Fazenda chegou a apresentar slides em inglês onde mostrava a desvalorização da moeda nacional, que ele agora quer evitar, ilustrada pelo título “Ganhando a guerra cambial”. Mario Henrique Simonsen tinha uma regra de ouro a esse respeito: jamais falar mal do Brasil em inglês.
O fato é que tivemos muito de uma coisa boa durante vários anos, e não aproveitamos esse bom momento para fazer reformas e desenvolver a nossa competitividade. A produtividade da economia brasileira está estagnada; como demonstra o trabalho do professor Regis Bonelli, o valor adicionado por trabalhador no Brasil em 2012 permanece no mesmo nível de 2000 e equivalente a 19% da produtividade americana. Sim, o trabalhador americano produz cinco vezes mais que o brasileiro por hora trabalhada, e não retiramos um centímetro do atraso nesses 12 anos. Pior, recuamos em alguns indicadores de ambiente de negócios, qualidade da infraestrutura e liberdade econômica.
A teoria de que o câmbio mais desvalorizado resolve o problema da falta de reformas politicamente complexas é, para usar palavras presidenciais, primitiva. O câmbio não tapa buracos nas estradas, nem diminui filas nos portos e aeroportos ou interfere no que se passa dentro da fábrica.
O câmbio é flutuante, como se sabe, o que é outra maneira de dizer que é efêmero, portanto algo do qual não se deve depender. Quem trabalha com câmbio se acostumou a proteger-se das flutuações de curto prazo e olhar os fundamentos, vale dizer, para o conjunto de fatores que compõem a real competitividade de um empreendimento.
Como as autoridades não trabalharam nesses temas associados ao que se chamava antigamente de “custo Brasil”, em boa medida por que entendiam que esta era uma agenda neoliberal, ficamos para trás em todos esses temas. Concentrou-se a atenção nos programas sociais, mas a competitividade foi esquecida. Uma coisa não exclui a outra, como tardiamente parecem perceber as autoridades.
Mas o fato é que, além dos ianques, e diante do acima exposto, outro gigante acordou, um personagem sinistro e muito temido: o mercado, ou para ser mais preciso, o mau humor do mercado, perto do qual os “black blocs” são meninos de igreja. As autoridades sabem como é assustador quando se formam as manadas, os ataques especulativos, sem controle e sem lógica, ao menos na aparência. Talvez exatamente como as multidões envolvidas nos protestos, o mercado demorou a reagir diante das inconsistências na política econômica.
Tratando-se do público em geral, a dona de casa inclusive, a Copa das Confederações pode ter servido para fornecer uma metáfora ampla do que há de errado nas nossas políticas públicas. Não creio que os economistas, e mesmo as raposas políticas e os marqueteiros, atinaram para o imenso poder de representação que possui o futebol, um retrato tão rico quanto amargo do modo como o País sabe organizar o seu talento, sua riqueza e seu imaginário dentro e fora do campo. É este o assunto do magnífico livro do mestre Roberto Da Matta, cujo título “A bola anda mais do que os homens”, bem resume a tese.
A Copa serviu para organizar a cabeça do brasileiro sobre o modo como os cartolas, incluídos os ministros, usam o dinheiro público em projetos de desenvolvimento. Diferentemente da tese de que o futebol é o ópio do povo, a Copa mostrou que o futebol é o teatro por onde enxergamos a nós mesmos, de modo que, ao montar um megaespetáculo, nos arriscamos a revelações inconvenientes.
A igualdade diante das regras, ou a meritocracia e o “fair-play” dentro de campo, é o que uniu esse jogo, na sua complexa simplicidade, às cores nacionais, e assim serviu para disseminar a cidadania.
Com a seleção em campo, cantamos o hino a plenos pulmões, e nunca tão alto como nesta Copa que revelou muito sobre o que se passa fora de campo. Sendo anfitriões, passamos a acompanhar o desenrolar das obras dos estádios e assim o horário nobre passou a explicar em miniatura o modo como as autoridades conduzem grandes programas públicos de desenvolvimento econômico.
O futebol está mesclado com a nacionalidade, a bandeira e o hino, símbolos nacionais que precisam ser honrados, e o mesmo vale para a moeda. O dinheiro é a pátria num papel pintado com nossas cores, é um pedaço de nós. Rasgar dinheiro em estádios de futebol é como queimar a bandeira; uma imagem fácil de entender, e que leva o público para os protestos. Não era por conta dos 20 centavos do ônibus de São Paulo; é claro que era o futebol, o que mais podia ter tanto impacto?
O futebol fez o brasileiro entender que o trem-bala é uma espécie de Itaquerão, e que as prioridades estão totalmente equivocadas para quem se espreme em ônibus ou em filas de hospitais. Pessoas normalmente pacatas vão para a rua sem saber bem por que, animadas, mas os que são vaiados sabem que estão devendo.
Os profissionais do mercado financeiro são cobradores muito mais frios e exigentes, e sobretudo, muito mais violentos, como o célebre personagem de Rubem Fonseca. As ruas mobilizam milhares ou milhões, o “protesto” do mercado financeiro mexe com bilhões. O dinheiro não leva desaforo. O ministro rasga dinheiro através do déficit nas contas públicas e humilha a nossa moeda ao dizer que ganhamos uma guerra ao desvalorizá-la.
A movimentação no mercado de câmbio não está distante da que se passa nas ruas, os gigantes são primos, quem sabe a mesma pessoa, a sombra um do outro.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 25/08/2013
Analise perfeita, e cada vez mais fico estupefato diante da pessima “gestao publica” do Brasil. Existe esperança de um dia mudarmos isto? Eu não acredito mais.
Grande texto. Uma visão clara do cerne da insatisfação dos brasileiros e uma perspectiva sombria do que poderá acontecer com os movimentos de um mercado hábil e inseguro exatamente quanto a essa “capacidade de gestão pública” a que o Sr. Eden Feldman menciona.
O que dizer de um gestor que mantém uma política de preços irreais em sua Cia. fazendo prejuízos mensais em um de seus principais produtos? (Sem reajuste de gasolina,Petrobrás gasta mais R$ 900 milhões/ mês – Estadão 26/8/13.)
E o que seus acionistas e autoridades reguladoras (como a CVM) têm a dizer? Apóiam “essa diretoria”?
Choque de gestão se faz com gestores competentes, marcos regulatórios firmes e respeitados por uma justiça incorruptível, não com políticos lisos e acostumados a se desviar de problemas e críticas.