A visita da blogueira cubana Yoani Sánchez ao Brasil, esta semana, mobilizou opiniões de todo tipo. Ainda ontem, em Brasília, parlamentares reagiram de modos antagônicos à presença dela no Congresso Nacional. Uns, como o senador petista Eduardo Suplicy, puseram-se de pé para aplaudi-la. Outros torceram o nariz. Representantes de autodenominados “movimentos sociais” esgoelavam-se para xingá-la de “agente da CIA”, etc., como já tinham feito no Recife.
Eram reações esperadas, assim como era esperado que Yoani roubasse a cena em todos os noticiários. Simpatizantes do governo cubano, mesmo os de boa-fé, dizem que tudo não passa de propaganda da imprensa burguesa contra o socialismo dos irmãos Castro. Não é bem assim. Colunista deste jornal, autora do livro De Cuba, com Carinho (Editora Contexto), uma antologia de crônicas em que descreve com acidez e delicadeza o seu cotidiano em Havana, Yoani é uma dessas pessoas que se tornam símbolo de uma causa. Está para a ditadura cubana, hoje, mais ou menos como Nelson Mandela, guardadas as proporções, esteve para o apartheid na África do Sul, tempos atrás. Conquistou notoriedade internacional e foi apontada como uma das pessoas mais influentes do mundo pela revista Time.
Os militantes que aqui a hostilizam com ares de fúria deveriam parar para refletir e considerar, ao menos considerar a hipótese de que o interesse público em torno da figura frágil dessa mulher não venha de nenhuma estratégia de propaganda engendrada pelo imperialismo ianque. Não somos todos nós, aqui, cordeiros obedientes do Tio Sam, por mais que tenhamos um dedo de simpatia por Barack Obama (por sinal, é bem pouco provável que o Tio Sam, esteja ele onde estiver, esteja preocupado com uma blogueira de Havana). Yoani Sánchez é notícia não por obra de uma conspiração internacional. Em primeiro lugar, ela é notícia, em boa parte, graças à barulheira de seus detratores, que fazem com que sua passagem por aqui vire um incidente de parar o trânsito. Em segundo lugar, e no que mais importa, ela é notícia porque, em sua saga pessoal, se escancara a grande contradição da qual Cuba nunca soube se libertar. Em Yoani vemos o significado final de mais de meio século da tirania da opinião que tomou conta da ilha. Na história dessa blogueira podemos vislumbrar o que foi feito (e desfeito) das utopias coletivistas que ainda enrijecem a fisionomia da América Latina. Sob qualquer perspectiva, Yoani é notícia. Os seus movimentos interessam a qualquer cidadão que preze a liberdade.
É certo que autocracias existem em toda parte do globo terrestre, enclausurando dissidentes (como em Cuba) e perseguindo homossexuais (os de Cuba chegaram a ser confinados). Por que, então, falar tanto de Cuba e tanto de Yoani Sánchez? Porque essa mulher é a prova viva da promessa libertária não cumprida pelos Castros, uma promessa que seduziu e envolveu, em seu início, algumas das maiores inteligências do nosso continente. Falar de Cuba – e de Yoani – é entender a nossa História.
Aí vêm as acusações conhecidas. Ela recebe fortunas do exterior. Colabora com o imperialismo. Mente. Ora, e daí? Mesmo que isso seja absolutamente verdadeiro, não muda nada. Mesmo que ela não passe de uma embusteira, isso por acaso retira dela o direito de viajar para onde bem entender?
Agora Yoani conseguiu o seu passaporte, mas não foi simples. Foram 20 tentativas frustradas. Ela era uma prisioneira, como muitos de seus conterrâneos são até hoje. O regime castrista, acuado, teve de ceder, teve de outorgar-lhe o documento como se fosse um indulto. Mas até aqui vinha prevalecendo o argumento de que, sob suspeita de ser uma agente provocadora, uma cubana não poderia sair do país. Os militantes que a hostilizam deveriam refletir um pouco: desde quando isso é democracia? Mesmo que Yoani defendesse abertamente os Estados Unidos – o que ela não faz, pois, entre outras coisas, critica o bloqueio imposto por Washington contra Cuba -, por que isso deveria retirar dela o direito de ir e vir? Com base em que princípio dos direitos humanos?
O fato é que a simples existência de Yoani Sánchez desmascara o arbítrio que se fantasia de democracia participativa. A democracia não se resume ao respeito à vontade da maioria (se é que, em Cuba, a maioria apoia mesmo o regime); a democracia exige igual respeito aos direitos da minoria, mesmo que essa minoria não passe de uma só pessoa. O socialismo que cobra seu preço em liberdade não pode ser chamado de igualitário. O socialismo que faz a História girar para trás, que volta no tempo, que adota uma ordem mais repressiva e mais primitiva que a do liberalismo político, não constitui um avanço, como se diz, mas um retrocesso (quase sempre com traços de selvageria). Quando as massas, embriagadas pela crença de que exercem o poder das multidões, marcham para silenciar os desviantes, a serviço de um governo, o que se tem é o germe do totalitarismo, nunca a libertação.
Que agora, no Brasil, alguns jovens tenham tentado, aos berros, impedir Yoani de falar é compreensível. Talvez seja até aceitável. Apesar de deselegante, esse tipo de protesto faz parte do código gestual do embate político (este modesto escrevinhador, quando estudante, já participou de manifestações assim, tentando cassar a palavra das autoridades do governo em solenidades públicas). Mas agora a ilusão que move os manifestantes contra Yoani é mais problemática. Eles tentam suprimir a expressão de uma pessoa comum, para que nela ninguém veja o vazio insuportável do regime político que adotaram como religião.
No Jornal Nacional de terça-feira, o senador Suplicy, ao lado da visitante cubana, apareceu com o rosto transtornado, gritando, tentando acalmar os que a insultavam: “Tenham coragem de ouvir!”.
Não adiantou. Eles estavam surdos. Inabaláveis em sua fé.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 21/02/2013
Concordo exceto na deselegância disque a impediram de falar. Nao e apenas deselegância. E falta de conhecimento do que e democracia.
muito bom este artigo. ao ver a yoane ser recebida com vaias, em recife, fiquei extremamente envergonhado. a reação a qual os manifestantes pró-cuba receberam a blogueira nos aeroportos só mostram como a religião comunista obstrui a capacidade de reflexão de seus adeptos.
Ótimo texto. Porém, a única coisa que não entendo é a ingênua (ou não?) complacência com Eduardo Suplicy. Acreditar que esse homem estava ali para realmente tentar acalmar os ânimos da galera é, no mínimo, ingenuidade. Para mim, está mais nítida a tática do “um bate o outro assopra”. Isso era claro, quando, depois do incidente em Feira de Santana, Suplicy sutilmente emparedava a moça com suas perguntas naquele debate tão generosamente proposto por ele. Aliás, cabe aqui a pergunta: o que Suplicy fazia lá pelos lados da Bahia?
Prezado Alberto
No termo “deselegância” usado pelo autor subintende-se a “falta de conhecimento do que seja a democracia.”, mas foi ótimo você ter feito questão de enfatizar.
Sds!
Essa moça aparentemente muito bem intencionada, não deve conhecer os reais problemas da sociedade brasileira, é uma pena que ela não faz idéia que vivemos em uma pseudodemocracia, onde a liberdade de expressão pertence apenas à grande mídia liderada por meia dúzia de famílias.
Ela deveria se orgulhar do sistema educacional e da saúde do seu país; espero que na sua passagem pelo Brasil, ela não precise usar um dos nossos hospitais públicos e permanecer horas na fila para ser atendida de forma precária.
Pela sua aparência, percebe-se que ela dever ter estudado em uma das Universidades Cubanas com ensino gratuito e universal para todos, não sei se esta no roteiro da ilustríssima blogueira, mas gostaria de convidá-la para conhecer uma das nossas universidades publicas, mais precisamente o estacionamento de uma delas e mostrar a quantidade de carros importados pertencentes aos alunos oriundos das elites brasileiras, pois só eles conseguem ingressar em uma instituição pública(…)