Desde a queda do Muro de Berlim, o mundo não passava por uma alteração de equilíbrio estratégico global tão profunda e imprevisível quanto a que vivemos. Os pilares da ordem internacional que, mal ou bem, prevaleceram desde o fim da Guerra Fria estão sendo fortemente abalados.
Vale a pena recapitular. A supremacia inconteste dos Estados Unidos se foi esvaindo desde a reação equivocada aos terríveis ataques terroristas de 2001.
George W. Bush lançou o imenso poderio militar americano na invasão do Iraque baseado em duas mentiras gravíssimas: a existência de armas de destruição de massa e a promessa de estabelecimento da democracia após a queda de Saddam Hussein. O resultado foi a comprovação das falácias e a segunda retirada inglória das forças americanas, que acaba de cumprir-se. Por isso e pela debacle econômica, depois da falência do banco Lehman Bros., os EUA já não são os detentores indiscutíveis da medalha de ouro do prestígio e do poder internacionais.
A Europa tem dado um espetáculo lamentável de incapacidade de ação. Nada indica que possa aspirar a qualquer papel relevante, exceção feita naturalmente à Alemanha que desponta singularmente como o país dominante na Europa — a França que me perdoe.
O Japão perdeu sua já pequena força internacional após anos de estagnação e queda de dinamismo e competitividade. A postura japonesa está sempre mais defensiva face à China, às duas Coreias (por motivos distintos) e menos protagônica.
Estará realmente surgindo, como disse pretensiosamente o analista indo-americano Fareed Zacharia, “a ascensão do resto”?
A China é a força emergente do nosso tempo. Após sobreviver a séculos de descalabro e mais recentemente às loucuras de Mao Tsé-Tung, ela emergiu, sob a liderança de Deng Xiaoping, como uma nação cada vez mais moderna e forte em todos os domínios, a única capaz de ombrear-se aos EUA em termos estratégicos e econômicos. Mas a China ainda tem uma projeção apenas limitada. Suas prioridades são regionais e econômicas, raramente globais.
A Índia é menos ainda um ator global, confrontada que vive com o oceano de miséria e com seus desafios — a China e um Paquistão cada vez mais perigoso.
A Rússia ainda não emergiu do desastre do comunismo, e não pode aspirar a um papel maior, salvo em sua esfera de influência direta, apesar do poder militar que herdou da URSS.
A África deu o exemplo da liderança mágica de Mandela e sua grande capacidade de superar a peste do apartheid, mas está longe do jogo global.
Nosso Brasil desponta, como sempre sonhamos, como uma voz cada vez mais respeitada e ouvida. Nunca tivemos prestígio tão amplo, em função do crescimento econômico e do progresso social que temos obtido. Em alguns campos, o peso do Brasil é decisivo como em termos de mudanças climáticas, as deliberações da OMC, os debates sobre não proliferação de armas nucleares na ONU e mesmo, quem ousaria crer há vinte anos, na área financeira internacional. Mas há limites claros na projeção de poder. Recordemos os já quase esquecidos mas lamentáveis episódios da visita presidencial ao Oriente Médio há dois anos — oferecendo uma mediação não solicitada para um problema que se revela cada vez mais intratável —, e, sobretudo, da busca quixotesca de uma saída para o conflito do Irã com as grandes potências sobre a corrida às armas nucleares desse país, tema em que o Brasil não tinha trunfo algum e foi apenas usado por Teerã.
Resultou daí a mais humilhante derrota diplomática que o Brasil sofreu, perdendo de 12 a 2 no Conselho de Segurança da ONU. No caminho para ser uma potência, não se pode cometer erros e atos gratuitos desse tamanho.
A conclusão é que se os donos do poder global já não são o que foram, também não se vislumbram, em futuro previsível, alternativas que sejam um contraponto real — especialmente ao peso estratégico dos Estados Unidos, malgrado o Lehman Bros., o Iraque e o Afeganistão. Assim o mundo está provavelmente iniciando uma fase de consideráveis incertezas e de acomodações, cujo resultado é previsível apenas por donos de bolas de cristal. Ou de certezas maiores de que sou capaz.
Fonte: O Globo, 27/12/2011
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