Após anos de forte crescimento econômico, o capitalismo liberal foi ao limite da ficção financeira, demolindo parte do realismo do mercado. Para bem atender o insaciável apetite de uma sociedade consumista, a “ciência” das finanças foi chamada para criar valor onde pairava o pó; os pacotes arrumadinhos da securitização proporcionaram uma alavancagem bancária impressionante, girando a roda da fortuna em ritmo transloucado. Certo dia, um desavisado resolveu abrir aqueles pacotinhos candidamente embrulhados e viu que tudo não passava de um enfeitado repasse irresponsável de títulos sem face. Quando a realidade despiu a fantasia, mostrando a face crua por trás da máscara, já era tarde demais; o sistema, globalizado, estava condenado a uma intoxicação generalizada. Sem ter para onde ir, o Estado foi chamado às pressas: ou injetava adrenalina com dinheiro novo ou o sistema financeiro mundial rumaria ao colapso. Entre a morte certa e chance de um suspiro, o plano de emergência foi executado.
Ocorre que a furunculose financeira era muito mais agressiva do que se pensava; a infecção, iniciada no setor privado, se alastrou rapidamente sobre as dívidas soberanas de países aparentemente saudáveis. A emergencial compra em massa de ativos podres comprometeu a saúde de diversas economias nacionais, gerando um problema institucional especialmente profundo na União Europeia. Com isso, além de um risco econômico sistêmico, passamos a ter uma crescente insatisfação e tensão política. Sim, caberá à Política – arte de criar consensos – resolver o imbróglio que foi criado. O preocupante é que vivemos tempos de um individualismo exacerbado, incapaz de construir ideias comuns e visões solidárias. Agrava a situação os radicalismos que, nos momentos de crise, são elevados na ultima potência, cegando a razão e calando o poder diplomático do diálogo. Nesse contexto, a razão fica impotente, cedendo espaço para as soluções mágicas de receituário demagógico.
O fato é que não haverá solução fácil. E não será fácil porque talvez precisaremos ajustar a filosofia que rege a atual lógica da vida. Sem cortinas, o Capitalismo – que tantos avanços e progressos gerou à humanidade – foi captado pelo impulso do consumismo desenfreado, criando-se a falsa ideia de que o crescimento econômico tenderia ao infinito. Ora, a natureza ensina que nada cresce sempre nem dura eternamente. A própria materialidade da vida humana tem um limite temporal: nascemos, crescemos e envelhecemos. Economicamente, o exemplo faz lembrar que os negócios são cíclicos e seguem o destino de uma “destruição criativa”, na conhecida expressão de Schumpeter. Possivelmente, o desafio atual seja o de, justamente, readequar o Capitalismo a sua essência original, fazendo da liberdade econômica um instrumento de propulsão organizada da vida social e capaz de imprimir um crescimento factível, real e livre de ficções financeiras. Nessa tarefa, precisaremos impor projetos de longo prazo em uma sociedade que tem pressa de viver e que está presa na redoma do imediatismo.
O horizonte não está claro, mas é possível que a atual crise financeira seja um ponto de inflexão na lógica do consumismo desenfreado e no próprio conceito de consumo para fins econômicos. O futuro pertencerá à qualidade das opções políticas que serão implementadas no presente. Aqui, os acertos nos levarão a melhores dias, enquanto os erros nos lançarão em tempos ainda mais inquietantes. De minha parte, acredito que tenhamos que buscar construir um modelo de “Capitalismo responsável” que seja apto a combinar o poder da liberdade individual com a força infatigável da solidariedade humana. Afinal, se um homem só pode muito, juntos, podemos mais. Sonho? Não. Apenas construir o possível com aquilo que a humanidade tem de melhor. Por que, então, não tentar?
Muito bom artigo, pois o autor considera o setor privado o responsável pela crise financeira. E clama por um capitalismo responsável e menos consumismo. Gostaria de chamar o Rodrigo Constantino para comentar o artigo.
HS.