O filme “A rede social” ganha um prêmio atrás do outro nos Estados Unidos. Seu assunto é a fundação do Facebook e seus personagens são reais e estão vivos. Não se pode dizer que o retrato que se pinta deles no filme seja o mais lisonjeiro do mundo. Ainda assim, existe a crença tácita de que o público não é tão burro a ponto de não perceber que “A rede social” é um filme, não um registro histórico fidedigno.
O Facebook, aliás, não teve prejuízos com o sucesso do filme, e seu fundador, Mark Zuckerberg, protagonista da história, aparentemente não perdeu amigos. Aliás, ele levou os funcionários para ver como Aaron Sorkin, o roteirista de “The West Wing”, retratou a criação do site.
Aqui no Brasil, “A rede social” seria impossível. Temos uma tradição, reconsagrada pelo novo Código Civil, de que só é possível retratar qualquer personagem real em situações de extrema bondade. Ou ele curava os leprosos e caminhava sobre as águas, ou sua memória e sua imagem estão sendo vilipendiadas pelos interesses mais sórdidos. Não há meio termo. A edição das obras completas de um famoso poeta foi atrasada em muitos anos porque os herdeiros vetavam a publicação de poemas dedicados à amante que todos sabiam que ele tinha. A biografia de um jogador de futebol foi recolhida porque aparentemente o biografado não aparecia de modo suficientemente angelical.
Certamente é isso que explica a ausência,em nossa dramaturgia, de episódios da história política. Por que não podemos fazer uma peça ou um filme em que Jânio Quadros apareça fraco e esfomeado, comendo um sanduíche de ovo em pleno comício, com a gema escorrendo pelo paletó, e depois falando em ditirambos e outras coisas dignas de Odorico Paraguaçu? Porque seria uma ofensa contra sua imagem. Jânio curava leprosos apenas com o toque das mãos e caminhava sobre as águas.
Diante de outros exemplos, já podemos imaginar que os herdeiros julgam que qualquer coisa menos do que isso é inaceitável. Se a nossa legislação existisse na Inglaterra elisabetana — e a Rainha Elizabeth I não foi tão econômica assim no uso da fogueira — Shakespeare não poderia ter escrito seus dramas históricos, e peças famosas como “Ricardo III” e “Henrique V” (para não falar de peças menos famosas como “Henrique VIII”, cujo personagem-título era pai da própria rainha). Se a nossa legislação existisse no Portugal quinhentista, em que havia censura da Inquisição, Camões não poderia ter escrito o relato da viagem de Vasco da Gama, também conhecido como “Os Lusíadas”.
É verdade que Camões procurou o mecenato da família do navegador, mas essa, exercendo seu pleno direito de propriedade, não quis dar dinheiro ao poeta. O que é bem melhor do que valer- se de meios judiciais para impedi-lo de publicar sua obra. A ideia de que os reinos de Dom Sebastião e de Elizabeth I podem ter oferecido mais liberdade para poetas e dramaturgos do que o da presidente que tirou o crucifixo do escritório logo na primeira semana é algo que, para recordar o famoso monólogo “Ser ou não ser”, obriga-nos a refletir.
Ainda assim, leio no GLOBO que o sindicato das enfermeiras declara estar a postos para combater judicialmente qualquer personagem televisivo que seja uma enfermeira atraente e que por isso supostamente contribua para a objetificação sexual das enfermeiras.
Ora, um pouco de bom senso nos diria que, na famosa vida real, isso depende mais da imagem de cada enfermeira em particular. Enquanto isso, todo empresário pode ser retratado como um torpe mau-caráter: são obras de ficção.
O mais importante, porém, é um pequeno dado, pressuposto em toda essa argumentação. Mesmo que a lei diga o contrário, de fato a sua imagem e a sua fama não pertencem a você. Sua imagem e sua fama são as opiniões que outras pessoas têm de você, e por isto pertencem a elas, não a você. Aliás, o fato de herdeiros impedirem a publicação de livros não só não altera em nada a minha opinião de poetas e de biografados como altera muito negativamente a minha opinião sobre esses herdeiros —rentistas da imagem alheia, que querem criar um feudo impossível, como alguém que deseja privatizar o ar que se respira. O efeito, além da diminuição do mercado — e de empregos —, é que, vedado o tratamento artístico da memória, qualquer um pode começar a arrotar que “nunca antes na história deste país” sem ser logo percebido como a banalidade que é.
Fonte: O Globo, 20/01/2011
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