Governos populistas são mestres em encontrar culpados externos para suas falhas. Cristina Kirchner nega a existência de novo calote e acaba de responsabilizar autoridades americanas por mais um default da dívida argentina. Lógica semelhante foi usada por seu marido, Néstor, ao culpar os credores pela dívida contraída durante a década de 1990, na gestão de Carlos Menem. No mesmo espírito, as reestruturações de 2005 e 2010 foram conduzidas de forma agressiva e impositiva, resultando em perdas de mais de 60% para os detentores de títulos argentinos.
Há credores que não aceitaram as condições oferecidas pela Argentina. Basicamente, são fundos de investimentos, apelidados de abutres, que compram os papéis por valores muito baixos na esperança de obter altos lucros por meio de recurso à Justiça. Como qualquer valor obtido mediante emissão de dívida poderia ser arrestado para pagar os insatisfeitos, o país está fora dos mercados desde 2001. “Perdido por um, perdido por mil”: as administrações Kirchner permaneceram anos sem pagar outras obrigações, incluindo as referentes à dívida entre países, à desapropriação da empresa YPF e às demandas resultantes de decisões do Ciadi, o centro de arbitragens do Banco Mundial. Com o agravamento da crise, a Argentina cedeu um pouco nesses assuntos, na esperança de melhorar a imagem externa e vencer a luta contra os abutres.
Só que a Justiça de Nova York confirmou a sentença proferida em 2012, favorável ao pagamento integral dos títulos em poder do fundo de investimentos MNL, no valor de US$ 1,3 bilhão. Posteriormente, falhou a tentativa da Argentina de recorrer à Corte Suprema, que, em meados de junho, se recusou a examinar o caso.
Em 30 de junho foi determinado um período de 30 dias para negociação da forma de pagamento à parte ganhadora. Nenhuma quitação de dívida poderia ser feita sem um acerto prévio com o MNL. Essa decisão foi ignorada pelo governo, que fez uma transferência de US$ 539 milhões para pagar aos credores da dívida reestruturada, operação imediatamente travada pelo Judiciário. Em 30 de julho, por não haver acordo com o MNL, foi suspensa a medida cautelar que permitia pagar separadamente os credores da dívida reestruturada, e o país entrou em novo default.
Agora está refém de uma cláusula acordada nas renegociações anteriores- Rights Upon Future Offers (Rufo) -, vigente até 31/12/2014, pela qual toda vantagem dada a um credor tem de ser oferecida aos demais. Ou seja, se o governo pagar integralmente aos fundos abutres, terá de estender as mesmas condições aos detentores da dívida já reestruturada, o que significaria quebrar o país, pois a conta ultrapassa US$ 120 bilhões. Nesse contexto, o discurso oficial é o de defender o país contra os ataques externos e quem ousa criticar o governo é tachado de traidor. O pior é que essa estratégia tem rendido bons frutos políticos à presidente, pois as pesquisas indicam um substancial aumento de sua popularidade.
Nunca foi tão grande o divórcio entre as expectativas políticas e econômicas na Argentina. As reservas internacionais estão em baixa, a inflação beira os 40% ao ano, o déficit primário é superior a 5% do PIB. Na área externa, o calote já aumentou os custos e diminuiu os prazos do financiamento ao comércio, os preços da soja e do milho estão caindo e as exportações de produtos industriais, especialmente de automóveis para o Brasil, têm perspectivas desanimadoras. Estimativas privadas preveem uma queda do PIB, neste ano, de até 2%.
Ninguém, muito menos a sra. Kirchner, parece saber quando vai sair do novo calote. Depois de dezembro, após o vencimento da cláusula Rufo, ou será necessário esperar o desfecho das próximas eleições? Neste momento ela está integralmente dedicada a tirar o máximo proveito de seu próprio fracasso e o que vale é a palavra de ordem: pátria ou abutres! Por aqui muita gente importante aplaude mais essa aventura. Quanto aos nossos problemas, a culpa vai para os analistas…
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/08/2014
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