História 1. Às vésperas da comemoração do sexto ano do Estado Novo, os estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo, em luta aberta contra a ditadura, decidiram ir às ruas. A única forma possível de divulgação seria a distribuição de folhetos diretamente à população da cidade. Mas como imprimi-los ante um regime que tudo via e sabia? Pois a operação clandestina só foi possível porque um certo Ruy Mesquita, estudante secundarista, em companhia de outros amigos, furtou um mimeógrafo da veneranda Sociedade Harmonia de Tênis. De boca vendada, a mocidade acadêmica fez da chamada “Passeata do Silêncio” um marco da resistência anti-Vargas .
História 2. Paris acabava de ser libertada do jugo nazista, em agosto de 1944. No Largo de São Francisco, os estudantes da Academia resolveram celebrar a data desfilando com as bandeiras das nações aliadas. Nenhuma bandeira da União Soviética, entretanto, foi encontrada. Alfredo Mesquita e seu sobrinho Ruy compraram um corte de tecido vermelho e alguns retalhos pretos, levados a um alfaiate para produzir uma foice e um martelo, pregados à bandeira. Ruy ficou encarregado de portá-la. Naquela mesma noite, em meio a uma celebração, o jovem seria preso pela primeira e única vez pela Polícia Especial do Estado Novo.
História 3. Era 1972. Em meio à repressão do regime militar, o “Jornal da Tarde” fora proibido de publicar uma entrevista de Roberto Campos. Indignado, Ruy Mesquita (que apoiou o Golpe de 1964 e, como seu pai, insurgiu-se contra o regime a partir do AI-2), enviou um irado telegrama ao então ministro da Justiça do governo Médici, Alfredo Buzaid. Lá Mesquita expressava o “sentimento de profunda humilhação e vergonha”. “Senti vergonha, Senhor Ministro, pelo Brasil, degradado à condição de uma republiqueta de banana ou de uma Uganda qualquer, por um governo que acaba de perder a compostura”. “Cheio de vergonha por meu País degradado a essa condição”, subscrevia-se “humilhado”. A censura prévia, ocasional, passou, então, a vigorar sistematicamente nos jornais do “Grupo Estado”, até 1975.
Era esse o espírito de Ruy Mesquita, o homem que parte depois de 88 venturosos anos. O último dos filhos vivos de Júlio de Mesquita Filho (1892-1969); o menino que não se deixou vergar pela paralisia infantil; o jovem que flertou com a ideia de uma esquerda democrática pós-Estado Novo; o jornalista que inventou o “Jornal da Tarde” e que viveu intensamente o que entendia ser a sua grande missão, honrar as tradições familiares e conduzir “O Estado de S. Paulo”, a instituição paulista herdada dos antepassados.
Desde cedo respirou Política. Testemunhou as 14 prisões e os dois exílios a que seu pai, Júlio de Mesquita Filho, foi submetido por Getúlio Vargas. Acompanhou, jovem, a intervenção no jornal da família entre 1940 e 1945. Com o retorno do “Estado” aos legítimos proprietários, jamais abandonaria a redação. A partir de 1948, sob a orientação de Giannino Carta, a quem considerava seu grande mestre, estreou na editoria de Internacional do jornal. Tornou-a referência da imprensa brasileira. Daquela tribuna denunciou os crimes da ditadura de Fulgêncio Batista e defendeu a Revolução Cubana. Enviado especial a Havana, no primeiro aniversário da vitória do movimento de Sierra Maestra, Ruy Mesquita foi um dos jornalistas brasileiros (o outro era Armando Gimenez) homenageados por Fidel Castro, em plena Praça da Revolução.
Da vanguardista editoria de Internacional, por ele ocupada por quase vinte anos, Ruy sairia, por incumbência do pai, para retomar antigo projeto da Casa: uma publicação vespertina, nas trilhas do “Estadinho”, a irrequieta edição da tarde que circulou entre 1915 e 1921. Assim nascia, em 1966, o “Jornal da Tarde”, diário que revolucionou a cobertura jornalística sob a inspiração do “New Journalism” e fez do arrojo gráfico marca inconfundível. Irreverente, o JT formou uma geração de grandes nomes do jornalismo brasileiro.
Ruy foi o coração do “Jornal da Tarde”, mas nunca se afastou do “Estado”. Em 1996, perto de completar 50 anos de carreira, imaginava poder aproveitar merecida aposentadoria. A morte do irmão Júlio de Mesquita Neto levou-o, entretanto, a assumir a direção do “Estado”. A exemplo do avô e do pai, manteve a preocupação diária de conferir voz ao “Estado”, por meio das “Notas e Informações”.
Anos atrás, em entrevista concedida ao autor, Mesquita definiu-se como um “proletário do jornalismo”, um repórter que, em décadas de atuação na imprensa diária, não via o jornal como um negócio ou um produto de marketing. Nesse sentido, causava-lhe repulsa o processo que denominou de “murdoquização” da imprensa, ou seja, a subordinação da redação a interesses comerciais, tal como ocorre no conglomerado de mídia de Rupert Murdoch, o magnata da mídia de língua inglesa.
Morre com Ruy Mesquita um estilo único de jornalismo. O “último dos moicanos”, como gostava de definir-se, acreditava, como o pai, no papel do jornal como mobilizador da opinião pública, e não como um mero veículo de informação – ou pior, de entretenimento.
O “Estado” assumiu o papel protagônico, como instrumento de combate às tiranias, em geral, e ao caudilhismo, em particular, elementos que marcaram a acidentada vida política do Brasil republicano. Neste espírito, Júlio de Mesquita Filho fundou a USP, que teria o papel de garantir, pela força transformadora da educação, a grandeza do Brasil como país democrático.
Visceralmente liberal e profundo admirador de Tocqueville, autor que conheceu na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, Ruy assistiu ao triunfo do Estado de Direito no Brasil. Saiu-se derrotado, entretanto, diante da melancólica transfiguração de trincheiras em meras plataformas comerciais de lançamento de “produtos” (e não de difusão de ideias) com vistas a cooptar “consumidores” (e não a formar cidadãos). O mundo de integridade e de intransigência em que Ruy Mesquita se moldou como homem, cidadão e jornalista, afinal de contas, desapareceu. Ele fará falta.
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