Mascarados saqueiam, destroem, ameaçam fisicamente as pessoas e produzem medo generalizado. Autoridades públicas nem da irrupção da violência sabem tratar
A democracia é uma forma de regramento de conflitos e de repressão à violência. Traduz-se o regramento pelo Estado de direito, onde as leis, válidas para todos, se caracterizam pela imparcialidade, impessoalidade e universalidade. As regras que a constituem não são, por isto mesmo, arbitrárias, mas são fruto de todo um ordenamento constitucional, garantido pelo voto de todos os cidadãos.
Não pode ela, então, conviver com a violência que ameaça a própria estabilidade constitucional e as seguranças jurídica e física. Contratos devem ser respeitados, os bens públicos e dos cidadãos devem ser garantidos pela autoridade estatal, em particular pela polícia e pelo Judiciário. O mesmo vale para a integridade física das pessoas e o seu direito de livre circulação pelas ruas.
Causa, portanto, a maior surpresa constatarmos que em recentes manifestações carros de empresas de comunicação tenham sido destruídos, sedes dessas mesmas empresas ameaçadas, agências bancárias vandalizadas, revendas de carros igualmente destruídas, sob o olhar complacente da polícia, como se não devesse intervir. Até o Hospital Sírio-Libanês foi palco de obstruções, impedindo que pessoas pudessem recorrer à sua emergência. A noção de limite foi perdida!
Acrescente-se a invasão ao Palácio do Itamaraty; a ameaça física ao governador Sérgio Cabral, que não pode fazer uso de seu apartamento, perturbando os seus vizinhos; as tentativas de coação ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, em frente ao Palácio do Governo, para que tenhamos um quadro mais completo da inércia reinante.
Convém lembrar, seguindo a lição de Hobbes, que a formação do Estado pressupõe que este exerça o monopólio da violência. Os cidadãos abdicariam do seu uso em proveito da paz e ordem públicas, condição da própria sociabilidade humana. Imagine-se se cada um puxasse uma arma ou agredisse fisicamente qualquer pessoa para a resolução de um conflito. Seria o caos completo.
O mesmo vale para os grupos que se digladiam pelo poder, usando o voto para dirimir os conflitos e lutas inerentes à sua conquista. Com tal objetivo é estabelecida uma série de pré-requisitos para o ordenamento desta disputa, como eleições periódicas, liberdade de organização partidária, imprensa e meios de comunicação livres, respeito aos resultados, direito das minorias e assim por diante. Em caso de descontentamento, devem os inconformados se dirigir aos tribunais, no caso brasileiro, ao Tribunal Superior Eleitoral.
Grupos que não aceitam o Estado de direito e a ordem constitucional, recorrendo à violência, devem, então, ser duramente reprimidos, pois são ameaças reais à própria existência da democracia. Se agirem livremente, só tendem a enfraquecer as próprias instituições. Pretendem ser aceitos democraticamente, tendo como finalidade a própria eliminação da democracia. Criam, para isto, um clima de instabilidade institucional.
Note-se que, nas jornadas de junho e nas manifestações de julho/agosto, grupos de extrema-esquerda fizeram uso impunemente da violência, como se esta fosse um instrumento legítimo de luta política. Na verdade, eles são a negação mesma da política, embora recorram a supostas justificativas sociais.
Uma das mais recorrentes é a utilização da expressão de que são contra a “criminalização dos movimentos sociais”. O que isto significa? Significa apenas um passaporte para o uso irrestrito da violência, algo que lhes garantiria a impunidade. Pretendem estar ao abrigo da lei, desrespeitando-a completamente. Na verdade, são criminosos que atentam contra a ordem democrática e, por isto mesmo, deveriam ser presos e julgados, não mais circulando livremente pelas ruas.
Contam com o apoio, para inibir a ação policial, de uma mídia alternativa, atualmente em voga, cuja especialidade consiste em filmar policiais que estão cumprindo a sua função e recorrendo à força para reprimir atos violentos, que se voltam contra a própria ordem pública. Trata-se do seu dever. O que acontece então? São apresentados, segundo o ângulo da foto e da filmagem, como “brutamontes” que estariam reprimindo jovens e estudantes! A inversão é total!
Os mascarados que saqueiam, destroem, ameaçam fisicamente as pessoas e produzem um medo generalizado são, então, apresentados como “heróis” sociais. Em vez de a lei ser a eles aplicada, teríamos a justificativa da violência, como se esta devesse ser aceita. O intolerável não pode ser democraticamente tolerado, sob pena de instabilizarmos as próprias instituições, que são as garantes da paz pública, princípio primeiro do próprio Estado.
As jornadas de junho, caracterizadas por serem, essencialmente, manifestações pacíficas de descontentamento e crítica aos partidos políticos e às autoridades constituídas, em níveis federal, estadual e municipal, atingindo todos os partidos políticos sem nenhuma exceção, foram uma prova inequívoca da vitalidade de nossa democracia. Angariaram ampla simpatia popular, alcançadas pessoas da mais diferentes faixas etárias, renda e escolaridade.
A sociedade autonomamente mobilizada por redes sociais soube dizer não ao que está aí, farta de demagogia, de falta de representatividade política, de altos impostos que se traduzem por serviços públicos de baixa qualidade. A inconformidade com a corrupção e o desvio de recursos públicos foi flagrante, mostrando cidadãos atentos aos valores básicos de toda convivência propriamente política. Repudiaram claramente a violência, a ponto de alguns participantes e simpatizantes dessas jornadas dizerem que não aceitariam participar desse tipo de manifestações. A violência foi e é amplamente rechaçada, em uma nítida demonstração de uma sociedade civil madura.
A questão, contudo, consiste na disparidade entre essa maturidade social e a falta de legitimidade das autoridades públicas, que nem da irrupção da violência sabem tratar. Quando passarão a respeitar as suas obrigações constitucionais, próprias da democracia?
Fonte: O Globo, 26/08/2013
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