É consenso a necessidade de se aprimorar a dinâmica fiscal e a gestão pública.
O ditado, da sabedoria bancária, se refere ao fato de que a realidade muda e o que é um remédio torna-se um veneno. Um exemplo é o congelamento de preços na década de 1980: num primeiro momento foi essencial para romper a inércia inflacionária; depois, foi uma das causas do descontrole exagerado do Cruzado. O assunto foi tratado de forma sentimental, era “antipatriótico” propor o descongelamento, quando ainda havia tempo de uma correção de rota. Não foi um final feliz.
Na década seguinte, a âncora cambial, que foi essencial para a estabilização, virou um problema. O regime entrou numa dinâmica perversa que exigia taxas de juros cada vez mais altas e reservas maiores. Todavia, o discurso oficial era de que as reservas diminuíam a vulnerabilidade externa, quando na realidade a aumentavam. O que poderia ter sido um ajuste gradual virou uma crise cambial que custou ao país dezenas de bilhões de dólares.
O que está acontecendo agora tem paralelos assustadores com os dois relatos anteriores. Não só a dinâmica macroeconômica está numa armadilha, como o discurso é de insistir em comprar mais reservas, leia-se ir mais fundo ainda. É uma estratégia camicase, que pode até trazer alguns ganhos no curto prazo, mas só vai aumentar o rombo e o custo de saída lá na frente. É uma visão mercantilista onerosa que está fadada ao fracasso.
A diferença entre as taxas das reservas internacionais e da dívida pública é da ordem de 10% ao ano. Como são US$ 290 bilhões, feitas as contas, o governo paga a especuladores estrangeiros R$ 50 bilhões por ano, que equivalem a um mês de toda a arrecadação tributária federal (IR, IPI, IOF e todos os outros tributos), ou a um ano do total de investimentos do governo central, sem nenhum benefício em troca.
É inconsistente intertemporalmente. A política de comprar mais dólares aumenta o custo de manter as reservas, dá mais segurança aos investidores e atrai ainda mais recursos, piorando as perspectivas de saída. Além da pressão fiscal, a valorização está prejudicando a indústria brasileira. O impacto varia de setor a setor. Todavia, há estudos estimando que dezenas de milhares de empregos já foram destruídos e cada vez são importados mais itens que antes eram produzidos aqui e impostos pagos aqui são canalizados a estrangeiros.
O Brasil tem déficit em conta corrente, portanto, necessita de recursos do resto do mundo. Todavia, o investimento externo que interessa é o que cria novos empregos, traz tecnologias inovadoras e abre mercados em outras partes do planeta. Aplicações que apenas cobram juros e partem ao primeiro estresse, com certeza, não são benéficas.
A estratégia cambial pode até trazer alguns ganhos no curto prazo, mas só vai aumentar o rombo e o custo de saída
Este mês, culpou-se a especulação bancária e limitou-se a posição que os bancos podem estar vendidos em divisas. O aumento da demanda de recursos externos dessas instituições foi efeito da alta dos compulsórios no mês anterior, que pressionou a busca de recursos externos. Em todo caso, culpar os bancos dá manchete, mas não resolve a questão. É como responsabilizar os ortopedistas e funileiros pelos acidentes de trânsito.
O que fazer?
O mais importante é mudar o paradigma vigente. Reservas tão altas não nos protegem, apenas fazem a alegria de especuladores. Há inúmeros exemplos históricos, um é como o ouro em Portugal, vindo das minas de além mar, foi parar nos cofres do banco da Inglaterra, há três séculos. Outro erro é dizer que o real é uma moeda forte. Não é; está valorizado e paga uma das taxas de juros mais altas do planeta. Moedas fortes são aquelas em que a estabilidade de seu valor é crível e paga juros baixos.
Urgentemente, deve-se seguir outro principio bancário que prescreve não colocar dinheiro bom em dinheiro ruim. É taxativo: parar de aumentar o volume de reservas. A compra de divisas está tendo pouco, ou nenhum, efeito na cotação do dólar. O que determina o preço, não é a oferta e a demanda e sim as expectativas de fluxo. Um volume tão elevado sinaliza vendas no futuro.
Outra medida, que já deveria ser sido tomada há tempos, é a descriminalização do câmbio. Pode-se comprar qualquer bem importado no Brasil, menos moeda estrangeira, que tem uma série de restrições. Atualmente, a legislação permite que um residente tenha conta em divisas no exterior e não aqui. O sistema bancário brasileiro tem todas as condições de operar contas em dólar para residentes. A liberação da posse e uso de divisas no país, eliminaria um anacronismo, elevaria a demanda interna de moeda estrangeira, tiraria parte do custo das reservas do Banco Central do Brasil e diminuiria o risco sistêmico.
Desobstruir os canais de política monetária também ajudaria muito. A taxa de juros de equilíbrio brasileira é três vezes superior à do México e da Colômbia que têm uma dinâmica fiscal e relação dívida líquida/Produto Interno Bruto (PIB) próxima à brasileira. A razão são as “jabuticabas” na política monetária, como os compulsórios draconianos, ativos financeiros com pouca ou nenhuma sensibilidade à Selic e o efeito perverso de alguns indexadores (TJLP, pós-fixados) que abafam o efeito das altas de juros elevando muito o patamar de equilíbrio. Sua eliminação geraria ganhos consideráveis.
Melhorar a competitividade da economia deveria ser outra prioridade, mas sequer está no radar. O Brasil caiu no ranking do Fórum Econômico Mundial, que mostra, por um lado, que o país tem uma sofisticação empresarial comparável aos países mais ricos e por outro, uma burocracia semelhante a dos mais pobres. A obsolescência de alguns arranjos institucionais é incompatível com a ambição de um crescimento sustentável. O progresso é impossível sem mudanças.
Aprimorar a dinâmica fiscal, melhorar a gestão do setor público é consenso. Todavia, é algo que tem que ser feito para ser crível. Anúncios de cortes de desperdícios vêm desde o Império e têm pouca credibilidade. Há um debate profundo sobre que tipo de caça supersônico deve-se comprar e o planejamento de ocupação do solo urbano é tratado como um tema secundário. Uma viagem à região serrana do Rio ilustra bem o ponto.
Enquanto o mundo se ajusta, os Estados Unidos com o afrouxamento monetário (QE2) e a China com a política cambial que lhe convém, continua-se em festa aqui. Um tradicional banqueiro paulistano dizia: “Quem não cuida do que é seu, fica sem nada”. A vida continua.
Fonte: Valor Econômico, 18/01/2011
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