Para se ver a magnitude da crise atual dos estados brasileiros, basta somar os deficits orçamentários dos três primeiros anos dos mandatos que ora se encerram. Falo em deficits, porque foi isso que ocorreu na grande maioria desses entes, e resultam de despesas autorizadas acima das receitas disponíveis. Estimativas preliminares revelam deficits do conjunto dos estados de R$ 37 bilhões em 2015-17, a preços de 2017, ante superavit acumulado de R$ 16 bilhões, em 2011-14. Dificilmente, deixará de acontecer um novo deficit em 2018, sinalizando uma situação ainda mais dramática para se enfrentar até 31 de dezembro.
Pela lei, a soma desses deficits teria de ser zerada antes do encerramento dos atuais mandatos, sob pena de duras punições aos titulares. Penso que essa tarefa é impossível, e que essas punições, quando não há escolha, estão erradas.
Diante da brutal recessão (a maior de nossa história), as receitas públicas, como se sabe, desabaram. Para piorar a situação do segundo ou terceiro estado de maior peso econômico, o Rio de Janeiro viu sua receita de royalties do petróleo desabar simultaneamente, sem que isso nada tivesse a ver com nossas mazelas internas. Tempestade perfeita.
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Para complementar, quem inventou as punições não devia saber que o grosso do orçamento estadual é 100% rígido e tem dono. Mesmo fora de uma crise tão brava, os governadores ficam com uma parcela residual (agora, mínima), e uma montanha de problemas para enfrentar, com destaque para os enormes e crescentes deficits previdenciários dos regimes dos seus servidores. Daí, as autorizações de gasto acima das disponibilidades, transferindo-se o problema, no desespero, para a gestão diária de caixa. Libera um centavo aqui, segura outro ali, e assim por diante.
Pelos meus cálculos, devido à recessão feroz, Rio e Minas teriam perdido em 2015-17 algo ao redor de R$ 28 bilhões cada, a preços de 2017, em termos de receita tributária. Comparei a arrecadação tributária observada com a que teria ocorrido se o PIB tivesse crescido à taxa média real verificada em 2002-2014. Esse valor corresponde a 133% do deficit acumulado do Rio e a 200% do de Minas Gerais. Como seus administradores poderiam lidar com tamanho choque? Quanto ao impacto isolado da queda do preço externo do petróleo, fazendo comparação análoga, a perda adicional de receita do Rio teria sido de R$ 19 bilhões ou 93% do deficit acumulado nesse estado. Chocante.
Quanto a Minas, registre-se que a situação inicial da atual administração era bem crítica, mesmo sem a recessão, pois o estado estava em clara rota de desequilíbrios explosivos. Ou seja, com mais razão teria de ser tratado de forma diferenciada pela lei de punições. Com efeito, a administração que se iniciou em 2015 teve de enfrentar uma herança maldita que incluiu: a) o uso, pela gestão anterior, das aplicações do fundo capitalizado da previdência dos servidores para financiar gastos outros, que precisam ser repostas; b) reajustes de salários concedidos lá atrás que só começariam a incidir sobre seus mandatos (como, e principalmente, a parcela de 31% concedida ao grupo “segurança”); c) despesas de exercícios anteriores que ficaram nas gavetas aguardando uma solução da nova administração, da ordem de R$ 2 bilhões, prática obviamente irregular; d) deficiência financeira implícita na peça orçamentária decorrente tanto de sobre-estimativa de receitas como de subestimativa de despesas, no valor de R$ 2 bilhões, totalizando, assim, R$ 4 bilhões de gastos que foram transferidos para a administração seguinte, em clara violação da proibição legal de transferir deficits para a frente. Para piorar a situação, tão logo Temer assumiu, a União cortou drasticamente a concessão de empréstimos a estados, que antes tinham encoberto os deficits da gestão precedente. De 2011 a 2014, haviam ingressado operações de crédito no montante de R$ 10,3 bilhões. Já em 2015-17, esse item contabilizou ingresso acumulado de apenas R$ 1,2 bilhão.
A União simplesmente cruzara os braços e limitava-se a dizer que os governadores são gastadores eméritos etc., etc. Enquanto isso, enfrentava seus deficits primários gigantescos ao redor de R$ 160 bilhões anuais, pela velha prática de emitir moeda e, depois, enxugar essa emissão colocando papéis de dívida de curtíssimo prazo, via Banco Central. Essa prática tem óbvios limites, mas o preço a pagar — seus efeitos sobre a inflação — só aparecerão mais à frente.
O próprio “programa de recuperação”, que foi aprovado contra a vontade da Fazenda, pouco serviu, pois mesmo o Rio, único estado a conseguir aderir, pena hoje com um pacote de atrasados que não foi capaz de equacionar, e se coloca na mesma rota de punição dos demais.
A saída é os tribunais de conta interpretarem que, nessas condições, os estados devem ser liberados de zerar os atrasados, sob a condição de começarem imediatamente a equacionar seus passivos atuariais, problema estrutural básico, conforme determina o artigo 40 da Constituição, que ninguém cumpre.
Fonte: “Correio Braziliense”, 02/10/2018