A economista-chefe da XP Investimentos, Zeina Latif, diz que o quadro da economia brasileira é muito grave. Para ela, além da piora momentânea, o crescimento futuro do Brasil está sendo prejudicado. “Existe um quadro de tal fragilidade da economia que não se trata apenas de demanda recuando. O País está machucando a oferta, machucando o potencial de crescimento de longo prazo, que é o que define uma depressão”, afirma.
Doutora em economia pela USP, Zeina acredita que é preciso resolver o nó político e definir uma agenda de reformas para o País. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Estado.
Qual é o quadro atual da economia brasileira?
É muito preocupante. A origem da crise é a questão fiscal. Ela desestruturou a nossa macroeconomia e jogou o País numa recessão. Como é que o País vai crescer se existe uma dúvida em relação à dinâmica de dívida? Como é que o Banco Central vai cortar juros se a inflação não cede ou cede lentamente? São erros que fomos acumulando ao longo dos últimos anos. Tudo isso é muito preocupante, pois o que estamos vendo não é mais um ciclo econômico normal na economia brasileira. A gente está vendo uma coisa mais grave.
Como o quê?
Empresas enfrentando sérias dificuldades financeiras e, portanto, uma necessidade de mais demissões. Se antes o ciclo de alta de desemprego no País era muito mais associado à não criação de vagas, agora já estamos num quadro de demissões. Existe um quadro de tal fragilidade da economia que não se trata apenas de demanda recuando. O País está machucando a oferta, machucando o potencial de crescimento de longo prazo, que é o que define uma depressão. A depressão ocorre quando há uma queda tão forte da atividade que o País machuca o seu potencial de crescimento.
A sra. acredita que o País enfrenta um quadro de depressão?
É um quadro de depressão em função do que vemos do impacto da crise pelo lado da oferta. E, obviamente, pela magnitude e pela rapidez. Nós já tivemos uma queda de quase 4% do PIB do ano passado sobre uma base já deprimida, podendo repetir algo dessa magnitude neste ano. Agora, as dificuldades financeiras fortes (das empresas) e as razões para mais aumento da taxa de desemprego batem na capacidade de crescimento do País no longo prazo, porque aí ninguém investe.
E o País entra num ciclo que parece sem fim.
Não tem crise que dure para sempre. É óbvio que, na economia, uma hora as válvulas começam a funcionar. Um exemplo disso é o setor externo. O problema é a duração deste ciclo – e quanto ele pode machucar a nossa capacidade de reação no futuro. Se eu estiver correta de que, de fato, essa crise está impactando o nosso crescimento potencial, a nossa capacidade de recuperar lá adiante pode ser comprometida. Quanto mais duradoura a crise, mais ela prejudica a nossa capacidade de reação. Como eu disse, não é ciclo normal. É algo mais grave.
O que é necessário de fato para que a gente saia dessa crise?
Aí entra o nó político. Para essa pergunta, é preciso mais clareza do que vai acontecer na política. Hoje, a visibilidade que o economista tem para fazer qualquer projeção está muito comprometida. E a questão política é definidora de rumos. O que vemos no Brasil é uma crise severa e, ao mesmo tempo, o País não tem uma agenda econômica consistente e de longo prazo. Há esforços do ministro da Fazenda. Ele falou sobre reforma da Previdência, agora não fala mais. Ele tentou lá trás. Acho que tem méritos essa colocação dele num quadro difícil. Mas o fato é que a gente observa um governo sem uma agenda. O próprio Ministério da Fazenda teve de deixar de lado essa discussão e passar para a fase de tapar buraco aqui e ali para tentar ter resultados fiscais não tão dramáticos.
Diante desse nó político, um cenário de troca de governo pode melhorar a economia?
Um cenário de impeachment não significa que a gente vai resolver todas essas questões. Mas só o fato de propor uma agenda econômica e debatê-la no Congresso e com a sociedade faz o foco sair da política e ir para a agenda econômica, o que pode começar a ajudar.
Como pode ajudar na economia real?
Aquele empresário que está passando por dificuldade financeira e está com o dedo no gatilho para demitir, de repente, espera. Os bancos que hoje estão numa postura conservadora, e não à toa – os índices de inadimplência estão com uma cara muito ruim –, podem começar a flexibilizar um pouco. A minha avaliação é que, ao ter uma agenda econômica para ser discutida, o foco da política se volta a essa agenda. E isso ajuda a acalmar os agentes econômicos, podendo ajudar a estancar a crise no curto prazo. Avanços adicionais vão depender de a gente de fato enxergar essa agenda se materializando.
E se o governo vencer a batalha do impeachment?
A impressão que dá é que existe uma grande esperança do PT de que o Lula consiga arrumar a casa. A decisão se ele vai poder assumir a Casa Civil é do Supremo. O problema que eu vejo é a esperança de repetir o feito do passado. Na campanha de 2002, o Lula fez a Carta aos Brasileiros e adotou uma política econômica consistente com aquilo que tinha sido discutido na campanha. Portanto, tinha legitimidade para tocar aquela agenda. Hoje, a gente vê um governo prometendo um governo mais de esquerda, com políticas para flexibilizar o lado fiscal e eventualmente cortar juros. Mas o problema é que essa agenda vai piorar o quadro.
No caso de ele assumir o cargo de ministro, a sra. acredita que ele implementaria essa agenda?
Acredito que ele não vai implementar uma agenda dessa forma. Mas, por outro lado, ele também não consegue repetir o feito do passado, do primeiro mandato dele, porque não é esse o discurso. Você não consegue prometer uma coisa e entregar outra. Uma forma de se olhar isso é o que aconteceu com a própria Dilma. Na campanha, foi colocado para a base aliada que os alicerces para o crescimento tinham sido construídos e que a desaceleração era temporária. Na hora que veio o Levy com a agenda de ajuste, o primeiro grupo a se rebelar foi a base aliada. Então, mal comparando, seria um repetição. A meu ver, a tendência é que, num cenário em que a Dilma fique e o Lula se torne ministro, deve ser mais do mesmo. E o mais do mesmo agrava a crise.
Nessa agenda fiscal, o que a sra. considera importante?
Não tenho como discordar dos meus colegas. Quando a gente olha a dinâmica de gastos públicos e considera o envelhecimento da população, a reforma da Previdência é prioridade. Pode até ser que seja possível fazer uma transição que torne a reforma mais palatável politicamente. Mas o fato é que essa agenda é prioritária. Tem também a discussão de reforma do ICMS, uma agenda que o Levy estava tocando. Essa reforma geraria um grande alívio se fosse possível inibir a guerra fiscal e reduzir a complexidade desse imposto. Agora, para além dessas questões, o Brasil também tem muitas distorções microeconômicas.
Num eventual governo Michel Temer, essas medidas podem sair do papel?
Acho que sim. A crise é muito grande e diferente do ambiente de 2014 e 2015, quando não estava claro para a sociedade o tamanho do estrago. Hoje, está mais do que escancarado. As pessoas já estão vendo que a economia está numa crise forte, impactando o mercado de trabalho. A crise ajuda a destravar essas questões porque a sociedade compreende melhor que é importante ter medidas duras que corrijam os problemas.
Isso vale para a política também?
Uma coisa que eu notei muito no ano passado era como a classe política não entendia a gravidade da crise econômica. A política estava de costas para a economia e isso ocorria em todos os lados, entre parlamentares da oposição e os governistas. Hoje a gente observa que há uma maior compreensão. A economia entrou na agenda política. Nós vemos parlamentares defendendo a disciplina fiscal. É um salto importante. O debate econômico está mais maduro. Se o processo de impeachment for adiante, o próximo ministro da Fazenda vai ter de fazer algo que o Joaquim Levy não conseguiu porque ele era continuidade. O novo ministro vai precisar escancarar o tamanho do problema fiscal. O desafio do próximo governo vai ser o diálogo: apontar o problema, mas também a solução.
Alguns economistas se mostraram preocupados com a possibilidade de o Brasil quebrar. A sra. enxerga esse risco?
Se nada for feito, a dívida vai seguir uma trajetória explosiva não só por causa da rigidez dos gastos, mas porque o Brasil não consegue arrumar a macroeconomia e, consequentemente, não destrava o crescimento. A gente precisa ter uma economia que volte a ter ganhos de produtividade. Uma lição dos últimos anos é não bagunçar a macroeconomia porque ela vai derrubar o crescimento. Então, uma agenda mínima traz essa tal arrumação com a possibilidade de trazer a inflação para baixo, o que abre espaço para corte de juros, e isso também ajuda na dinâmica da dívida. Em última instância, uma decisão de calote é política. E eu acredito que, com base na nossa experiência passada, nossos governantes não fariam isso.
Por quê?
Entre arcar com o custo político de um calote ou de uma reforma da Previdência, eu acho que o custo da reforma é menor e o benefício vem ao longo do tempo. Antes, eu acho que alguma reforma acontece. E, antes disso, infelizmente, tem o risco de uma espiral inflacionária. Essa inflação alta tem nome e endereço: é óbvio que é um desequilíbrio fiscal. Não que o Banco Central tenha cometido equívocos, mas o desarranjo fiscal reduz muito a eficácia da política monetária. Portanto, a gente corre o risco de ter uma espiral se a gente insistir em postergar problemas e não enfrentá-los.
Fonte: O Estado de S.Paulo.
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