O economista irlandês Marc Morgan Milá lançou uma provocação para o Brasil: “Como é possível defender a narrativa de meritocracia quando o Brasil é o país que menos taxa herança?”.
Primeiro, um parêntese: eu considero irresponsável propor um aumento líquido de impostos no Brasil. Já pagamos muito, e o que o país precisa agora é crescer. No entanto, se o aumento do imposto de herança fosse contrabalanceado pela diminuição de outros impostos que hoje impactam os mais pobres, eu defenderia a mudança.
Feito esse parêntese, quero, neste artigo, olhar para esse ideal de meritocracia a que Milá se refere e que volta e meia aparece no debate público.
Milá faz referência a uma ideia específica de meritocracia: a de uma sociedade na qual a posição que a pessoa ocupa na hierarquia social e econômica é determinada pelo seu mérito; ou seja, pelo esforço pessoal.
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Na partida, todos os jovens têm as mesmas chances; se cada um deles se tornará CEO ou lixeiro, isso só depende da dedicação e do trabalho de cada um e da escolha que cada um fizer entre valorizar mais o dinheiro ou outros aspectos da vida.
Uma sociedade assim só poderia existir se todos começassem do mesmo ponto de partida. Ou seja, se as oportunidades fossem iguais para todos os jovens que estão entrando na vida profissional. Sem a igualdade de oportunidades, alguns têm mais oportunidades que outros, e portanto, têm mais chances de chegar ao topo, e portanto tenderão a passar mais oportunidades para seus filhos.
Suponha que passássemos a taxar heranças como nos EUA, em que a taxa pode chegar a 40%. Nesse caso, chegaríamos à meritocracia? Longe disso.
Mesmo se o Brasil taxasse pesadamente a herança, Milá poderia voltar aqui e refazer o mesmo exato argumento: como defender a narrativa da meritocracia se as condições de partida ainda não são estritamente iguais?
A resposta é que o que as pessoas chamam de meritocracia não é essa utopia na qual o mérito pessoal é o único determinante da posição do indivíduo. Seu papel é outro: ele é um elemento necessário do progresso de cada um.
Quase ninguém tem a chance de ir de miserável a milionário, mas muitos são capazes de, com o próprio trabalho, melhorar sua situação e proporcionar aos filhos condições iniciais melhores do que as que tiveram em suas próprias infâncias. Meritocracia, aí, é um sistema no qual os indivíduos possam se desenvolver e colher os frutos de seus esforços.
O Brasil é um país que deixa a desejar também nesse sentido de meritocracia. É um país que impõe obstáculos a quem deseja crescer; que dificulta relações de trabalho; que sabota a aspiração empreendedora (que nada mais é do que o desejo de subir pelo próprio mérito) com burocracia e regras ineficientes; que falha em oferecer condições básicas de educação e saúde; e que, por fim, tira dos cidadãos grande parte do fruto de seu próprio trabalho.
Assim, refaço a provocação de Milá: com um Estado tão pesado e ineficiente —e que alguns querem tornar ainda mais pesado— como falar em meritocracia?
A vida humana não é apenas competição para ver quem chega ao topo. Para a maioria das pessoas, é uma luta para conseguir uma existência digna para si e para os seus, sem se preocupar se há pessoas muito mais ricas que elas. Para isso, menos relevante que imaginar novas maneiras de tirar dos ricos para dar aos pobres é repensar o nosso ambiente econômico de modo que ele funcione melhor para todos.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 08/07/2018