A pergunta é importante e faz parte de nosso momento. Antigamente, ela não existia. Tínhamos todos a certeza plena de que éramos “subdesenvolvidos”, com direito a um hino e tudo. Tempos depois, a questão crítica era saber qual o rumo do Brasil – e, sabendo que ele ia para o abismo, evitar o mau passo. Em seguida, nos anos mais pesados da hiperinflação e da esperança de que havia mesmo uma fórmula capaz de resolver todos os problemas sociais do mundo e do país, perguntou-se muito se o Brasil daria certo. Alguns falavam que o país havia “perdido o trem da história”. Imagine o leitor: a dona História, personificada num elegante trem de alta velocidade, esperando numa plataforma um Brasil que, indolente e sem agenda, chegava atrasado.
Um cruzamento doentio de três raças tristes: o português atrasado, cúpido e subserviente aos ingleses e, ademais, já mistura do pela ocupação árabe de 500 anos; o índio primitivo, infantil e indigente; e o negro melancólico e ignorante, cujo destino era ser escravo. Tal mistura explicaria essa preguiça. No século XIX, quando os subsociólogos europeus e americanos afirmam que a marca da Civilização (com “C” maiúsculo) eram a pureza étnica (ou“racial”, como se dizia), a homogeneidade dos costumes, a integridade linguística e a posse de um território indiscutível, tínhamos todas as unidades, menos a racial. Nosso maior problema não era como os europeus e os americanos nos viam – pobres morenos, mulatos ou negros vivendo num clima desgraçadamente tropical –, mas como nós mesmos aceitávamos esses diagnósticos e repetíamos o mantra de um país sem futuro e, por isso mesmo, dotado apenas de futuro.
No afã de copiarmos o fundamentalismo ideológico europeu e americano, criamos uma teoria da miscigenação e do branqueamento que contrariava frontalmente as teorias do racismo clássico. O racismo que justificava as segregações, inspirado no livro “A diversidade moral e intelectual das raças”, escrito em 1856 pelo francês Conde de Gobineau, dizia que a diversidade humana era uma questão de “raça”. Elas seriam responsáveis por estágios de desenvolvimento econômico, social e tecnológico. Uma redução natural, o conceito de “raça” explicava não apenas a multiplicidade humana, mas também hierarquizava essa pluralidade. A “raça branca” estava no topo, e as outras – a“amarela” e a “negra” (estou usando os termos de Gobineau) eram inferiores, vocacionadas para ser civilizadas e catequizadas. Enquanto as raças se mantivessem puras, tudo correria bem. O problema era o cruzamento ou o encontro físico ou íntimo das raças.
É óbvio que, por trás dessas arrogantes teorizações, estava a condenação da intimidade, da atração, do amor e do relacionamento – que engendrava como castigo os mulatos, que seriam estéreis, ou os mestiços, que combinariam, como ocorreu no mundo inteiro, mas sobretudo em países como o Brasil, traços de várias sociedades, línguas, músicas, comidas, vestimentas e sistemas de crenças. A mistura que produziria seres ou grupos inferiores e doentios era o ponto focal das teorias europeias e americanas. Tanto que Gobineau, cônsul da frança na corte de Pedro II, afirmava que, em 200 anos, o Brasil pereceria porque – como observa thomas Skidmore em seu livro “Preto no branco” – “a mistura apagaria as melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental”. Tanto para ele quanto para o zoólogo Louis Agassiz, de Harvard, que também visitou o Brasil, a miscigenação levaria a um beco sem saída e a um não futuro.
Quando se começou a estudar o Brasil não como raça, mas como um grupo dotado de costumes, hábitos e valores – isso que os antropólogos chamam de cultura –, começamos a sair do inexorável para entrar no terreno do possível. E o território do possível é o solo da liberdade e das escolhas, da política e da responsabilidade.
Quando saímos das garras dessa falsa ciência chamada “eugenia” (a palavra significa bem-nascido) – que, na europa, produziu o nazifascismo e o Holocausto e, nos estados unidos dos livres e iguais, inventou o segregacionismo e o comitê de atividades antiamericanas –, entramos no mundo das possibilidades. E o que se começou a perceber a partir, entre outros, do Gilberto Freyre de “Casa grande & senzala”, de 1933, foi que evitar a mistura era equivalente a evadir-se do contato e do encontro humano complexo, contraditório, antagônico, mas igualmente solidário e visceral entre pessoas, comidas, músicas e moralidade, usando como instrumento o próprio corpo.
Pensemos no colonizador clássico. Pensemos nos ingleses na índia. Ali, a proibição da mistura – como ocorreu com John Smith e Pocahontas na América – impede de olhar o par relacionado, mas, ao mesmo tempo, tão diferenciado. No Brasil, ao contrário, tem sido a mestiçagem, com seu cinismo positivo e ceticismo exemplar, um instrumento de salvação do país e, sobretudo, de seus pobres. A mestiçagem tem sido não apenas um foco inimaginável de poder; ela é, principalmente, uma máquina de juntar opostos, de obrigar a pensar no outro e no subordinado. Tem sido um instrumento de criar beleza e harmonia.
Chamo a atenção para o inesperado do mundo. O Brasil entrou no século XX como um país mestiço e condenado a ser fraco e atrasado, a menos que virasse branco. Hoje, neste século XXI estruturado em cima de paradoxos e dúvidas, nosso mulatismo cultural nos abre ao outro, aos relacionamentos e a um estilo nacional de ser que provoca sorrisos em toda parte. A abertura para o outro e para os motivos do outro como um estilo de educação sentimental é a marca brasileira. Vemos melhor do que o resto do mundo que vivemos com os outros e não contra eles. Mulatizamos o individualismo, tornando-o personalista. Um individualismo que se curva diante das relações, dos parentes e dos amigos. Isso tem produzido problemas na esfera política e administrativa, sem dúvida. Mas pode ser contrabalançado pela força de novos hibridismos institucionais e pela visão da totalidade nacional em suas carências. Não dá mais para, comos amigos e partidários, furtar o dinheiro de todos.
Os racistas não previam aquilo que já estamos fartos de saber. Não há pureza no mundo. Todos precisamos uns dos outros. Não há nada como combinar temperos e músicas. Nossa vocação (e desafio) é mostrar ao mundo que é possível viver ligando fronteiras, construindo pontes e ultrapassando fundamentalismos e preconceitos. O mundo não é somente impuro. Ele é mestiço, misturado e confuso.
Fonte: revista Época
No culto eterno a mestiçagem existe uma clara tentativa de colocar para debaixo do tapete a existência de preconceitos e racismo com negros no brasil. É como se quem inventasse o racismo fossem as vítimas!
Quanto mais presente está na pele ou na cultura do sujeito a presença africana, mais ele sofre estigmação e preconceito. Cabelo “ruim” no Brasil não é do mestiço. Candomblé e Umbanda são estigmatizados, Rastafarianismo, tranças idem. O “moreninho” pode até namorar tua filha, mas o negro “azul” dificilmente é aceito na família branca brasileira.
Enfim, não dá para para continuar com essa antropologia moribunda de culto ao mestiço que fazia sentido com Gilberto Freyre, mas não faz hoje: nossos brancos podem ser mestiços, nossos negros mestiços, mas quanto maior a presença africana no caldo cultural, mais preconceito existe.
Parabéns! Belíssimo texto. É preciso varrer esta alienação chamada de multiculturalismo no Brasil. Conseguimos formar uma única identidade como nação. Isto não pode ser ignorado.