Com mais de 90 mil alunos, quase 30 mil na pós-graduação, a Universidade de São Paulo (USP) enfrenta sua pior crise. Com orçamento de R$ 5 bilhões comprometido totalmente com a folha de pagamentos, a reitoria congelou salários e cortou verbas de pesquisa. Recentemente, a maior universidade do país perdeu o posto de melhor da América Latina (no ranking da consultoria britânica QS), para a Pontifícia Universidade Católica do Chile, que ganhou pontos no reconhecimento internacional de trabalhos de pesquisa. “Não importa se é a primeira ou segunda da América Latina”, diz Simon Schwartzman, doutor em ciência política e pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, do Rio de Janeiro. “Isso não muda um fato: ela não está entre as melhores do mundo.” Falta dar o primeiro passo: exigir que ela chegue lá.
ÉPOCA – A USP deixou de ser a melhor da América Latina. A queda no ranking britânico é sinal de que algo vai mal?
Simon Schwartzman – A Universidade Católica do Chile é uma excelente universidade, pequena, privada, que recebe subsídios do governo. Ter ficado em segundo lugar não é a principal questão. Realmente importa que, no cenário internacional, a USP continua muito mal. Mesmo que tivesse ficado em primeiro lugar na América Latina, continua abaixo das 150 melhores do mundo. Deve-se questionar é se o Brasil precisa ter universidades de ponta, com padrão internacional.
ÉPOCA – E precisa?
Schwartzman – No mundo inteiro, os países estão preocupados com isso. Na Ásia, na Europa, nos Estados Unidos. Há novos conhecimentos, novas tecnologias, avanços científicos. Ninguém quer ficar para trás, então há um esforço para incluir pelo menos algumas de suas universidades de melhor qualidade nesse circuito mundial de conhecimento, informações e competências. A China se esforça para emplacar dezenas de suas universidades. A Rússia, a Coreia selecionaram algumas para investir e transformar em universidade de ponta. No Brasil, esse assunto não entra na pauta. Ficar de fora desses rankings significa que não passam por aqui as principais pessoas competentes, ideias e tecnologias. Não há circulação de conhecimentos e ideias. O Brasil não conversa de igual para igual com o resto do mundo. Isso beneficiaria o setor produtivo, o governo, as instituições. É claro que não dá para transformar todo o ensino superior em universidades de excelência internacional. A maior parte do ensino superior cuida de ensino, e essas universidades internacionais são fortes em pós-graduação e pesquisa pesada. No Brasil, a USP é certamente a que teria mais condições de assumir esse papel. É a que tem mais dinheiro, um acervo de competências de professores e institutos, é de longe a que forma mais doutores. Pode não ser a única, mas tem potencial.
ÉPOCA – O que falta para que isso aconteça?
Schwartzman – Definir o papel da USP e criar as condições institucionais para mudar o que precisa ser mudado. Do jeito como está hoje, a USP não tem condições de fazer isso sozinha. Em primeiro lugar, é preciso ter políticas públicas. O governo precisaria tomar essa decisão, como os outros países fizeram. Como o Chile fez. Uma mudança assim mexe muito com as estruturas internas da universidade. Mas o principal é escolher um foco para a universidade. O que queremos que a USP seja? Hoje, ela tem múltiplos papéis: a graduação, a pós, a pesquisa. Tem até uma tentativa ruim de investir em ensino técnico, com o campus da Zona Leste de São Paulo. Falta um foco. Se for para ser uma universidade de massa, que dará educação profissional, então não precisa pagar professor e pesquisador de dedicação exclusiva. Se for fazer pesquisa, não precisa do ensino profissional.
ÉPOCA – Quem decide esse foco?
Schwartzman – Se você conversar com professores de diferentes departamentos e faculdades, essas pessoas têm ideia de como tem de ser, de como fazer para melhorar a qualidade. Mas isso não se junta com uma política da instituição, um órgão moroso, pouco ágil. É normal que universidades grandes como a USP sejam mais morosas. Ao mesmo tempo, a USP é muito amarrada burocraticamente. As coisas são resolvidas internamente de forma política, sem dar prioridade à maximização da qualidade de sua pesquisa.
ÉPOCA – Ter autonomia não deveria ajudar nesse ponto?
Schwartzman – A autonomia é usada na USP para deixar tudo como está. Uma universidade de ponta tem de ser autônoma e receber os estímulos adequados para desempenhar esse papel importante. Inglaterra e Alemanha concentram seus investimentos em universidades eleitas de ponta. Elas têm autonomia para usar os recursos da forma que quiserem. Em contrapartida, são obrigadas a mostrar resultado. A USP não tem tanta autonomia assim. Ela não pode mexer na estrutura dos salários – recurso fundamental para qualquer universidade que queira disputar mundialmente o conhecimento e talentos. É fundamental ter liberdade de negociar um salário diferente e dar boas condições de trabalho para atrair o talento internacional. E também poder dispensar quem não é tão talentoso.
ÉPOCA – Além de como lidar com os salários dos professores, o que mais precisa mudar?
Schwartzman – Há outros dois pontos fundamentais. Primeiro, a falta de interação da pesquisa acadêmica com o mundo externo. A pesquisa precisa ser feita em parceria, cooperação, projetos em conjunto com o setor produtivo, governos e outras instituições. A USP até tem um pouco disso, mas não é a política geral, e muita gente se opõe. Os entraves legais, por ser um órgão público, dificultam o recebimento de financiamentos assim. Poder trabalhar em parceria é importante, para não se manter isolado. Ter conhecimento acadêmico de qualidade não é suficiente. É preciso ter força no acadêmico e na ciência aplicada. As universidades de ponta fazem ambos. Uma competência não existe sem a outra. A USP, assim como outras universidades brasileiras, nunca se preocupou em atrair professores e alunos internacionais. Quando dei aula lá, na década de 1990, não consegui achar um documento oficial de apresentação da universidade em inglês. Eu mesmo tive de escrever um. De maneira geral, o Brasil poderia ser um polo atraente para alunos da América Latina. Mas ninguém faz isso. Com uma política equivocada, o ex-presidente Lula criou a universidade da integração da América Latina em Foz do Iguaçu. Ele poderia ter pegado uma das grandes federais e investido nisso. O programa federal Ciência Sem Fronteira nem pode ser considerado um esforço de internacionalização. Ele não é ligado a nenhuma universidade. Trata-se de dar bolsas para alunos estudarem fora, e depois ver no que dá.
ÉPOCA – O senhor acha que a atual crise financeira é uma questão pontual de má gestão?
Schwartzman – Há dois ou três anos, a USP tinha dinheiro sobrando. Não só ela, mas todas as universidades paulistas, que recebem quase 10% dos impostos do Estado mais rico do país. A gestão do dinheiro é complicada. O controle dos gastos é muito burocrático. A falta de foco piora a situação, porque ela sofre demandas de todos os lados.
ÉPOCA – Como a falta de consenso sobre o papel da USP e a morosidade afetam a excelência acadêmica?
Schwartzman – Vou dar um exemplo. Quando estudava na Universidade da Califórnia, em Berkeley, que é pública e tem dezenas de prêmios Nobel, aconteceu um fato de grande repercussão. O departamento de biologia ficou velho. Era um excelente departamento, com gente qualificada, mas a biologia feita lá dentro ficou antiga com a chegada de novos conhecimentos, principalmente na área da genética. O pessoal não se atualizou. Isso foi detectado por uma comissão externa, criada para avaliar a situação. Essa comissão chegou à conclusão de que o departamento precisava mudar. As pessoas foram afastadas. Foi criado um orçamento pesado, e eles saíram à procura de pessoal qualificado para tocar o novo departamento. Foram perguntar quanto queriam ganhar e que equipe precisariam montar. Esse tipo de ação é impensável na USP.
ÉPOCA – Então a USP corre o risco de se tornar uma universidade pior?
Schwartzman – Ela é de longe a melhor do Brasil. Sua reputação é boa aqui dentro. Mas é uma qualidade convencional, que não corresponde ao que ela custa e ao que o Brasil precisa. Ela poderia ter um papel mais importante do que tem.
Fonte: Época, 18/06/2014.
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