Temos visto muitas discussões sobre o custo-benefício da paralisação da economia vis-à-vis o achatamento da curva de transmissão do vírus. O debate sobre as respostas fiscais e monetárias mais adequadas para lidar com a recessão econômica também é intenso.
Entretanto, pouco se fala do efeito colateral do combate à pandemia —a volta do nacionalismo econômico— e da forma de prevenção das próximas epidemias que certamente virão, as quais, por ironia, decorrem do aprofundamento do processo de globalização.
Muito antes de o coronavírus surgir, a disputa pela hegemonia geopolítica já trazia as sementes da desglobalização. A guerra comercial entre EUA e China era a expressão mais visível de um processo de separação profunda e inequívoca entre as duas maiores economias.
Segundo o U.S. Census Bureau, o comércio entre os países caiu de US$ 630 bilhões em 2017 para US$ 560 bilhões em 2019.
O combate à pandemia paralisou imediatamente o fluxo entre pessoas e, certamente, terá reflexos duradouros nas transações internacionais. Dificilmente as cadeias globais de produção voltarão a ser restabelecidas como anteriormente. O mundo se mostrou extremamente vulnerável ao vírus justamente devido ao elevado nível de interação global.
A ausência de cooperação trará perdas de vidas e de PIB que poderiam ser evitadas. Washington e Pequim têm encarado o surto como mais uma rodada da rivalidade geopolítica.
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Enquanto as autoridades americanas culpam Pequim por causar o que chamam de coronavírus chinês, a China, que parece ter tido sucesso na contenção relativamente rápida da epidemia, poderia estar expondo sua experiência e provendo de forma imediata o que há de mais escasso: respiradores e leitos móveis. No entanto, o que vemos é os EUA buscando elevar desesperadamente a produção doméstica de kits de teste Covid-19, em vez de licenciar a sua importação.
A decisão de Trump de fechar as fronteiras com a Europa de forma repentina e unilateral foi outra fonte de aumento das tensões geopolíticas, contribuindo para a falta de cooperação entre antigos aliados. A Alemanha vem tentando bloquear a aquisição americana de uma empresa de biotecnologia alemã, ao passo que Trump promete altas quantias ao setor farmacêutico para que este produza uma vacina contra a Covid-19 exclusivamente para os EUA.
A desarticulação na adoção das medidas de contenção dos vírus é o aspecto mais grave da volta do nacionalismo. A inconsistência e a imprevisibilidade das políticas de isolamento social trazem vários problemas. O primeiro de dimensão espacial.
Qualquer país que adote o confinamento pelo tempo necessário e consiga parar a propagação do vírus pode acabar enfrentando a mesma batalha quando o bloqueio é levantado se os demais países não adotaram os mesmos procedimentos. Esse é o risco em que a China incorrerá a não ser que fique isolada do resto do mundo.
O segundo problema tem dimensão temporal. Quando os países amenizam as medidas de isolamento por pressão de empresas, trabalhadores e políticos, deixando de lado os infectologistas, uma reação em cadeia é ativada. Nos EUA, Trump ameaça levantar as restrições e assim gera a mesma reação do Reino Unido. Um bloqueio coordenado e temporário é a única alternativa a uma restrição prolongada dos movimentos.
O aprofundamento da globalização pode ser a única solução para deixar o mundo menos vulnerável. Uma estratégia de longo prazo para erradicar pandemias e ao mesmo tempo permitir a retomada da economia consiste em fortalecer a infraestrutura de saúde, humana e física, da maioria dos países independentemente de seus PIBs. O retorno social de ter um sistema de saúde mais adequado supera seu custo financeiro.
Outro caminho é refinar a capacidade de medir e conter a difusão de vírus, explorando tecnologias existentes e dados no nível mais detalhado possível.
O mundo provavelmente não será o mesmo após a pandemia. O nacionalismo é uma das causas da ausência de resposta global e coordenada à crise. Xenofobia, isolacionismo podem crescer de forma rápida em momento de crise social e carência de verdadeiros líderes globais.
A globalização tem sido o maior motor de crescimento econômico nas últimas décadas, e qualquer retrocesso nesse sentindo tornará a recessão global mais profunda e duradoura.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 26/3/2020