As reviravoltas convolutas do caso Amia e o enigma deixado pela morte do procurador argentino Alberto Nisman são os eixos centrais de “Nisman debe morir”
Na próxima terça-feira, 18 de julho, faz 23 anos que um terrorista detonou um carro-bomba na Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), em Buenos Aires, matando 85 pessoas. Foi o maior ataque de jihadistas na América Latina. Até hoje, ninguém foi preso, julgado ou condenado pelo crime. E, até hoje, a sigla Amia paira como assombração sobre os governos de Carlos Menem, Néstor e, sobretudo, Cristina Kirchner. No início de 2015, Alberto Nisman, procurador que assumira o caso havia pouco mais de dez anos, após a conturbada destituição do juiz e dois outros procuradores envolvidos numa denúncia de compra de depoimento, decidiu voltar de suas férias na Europa para apresentar denúncia por obstrução da Justiça contra Cristina, então presidente da República, e seu chanceler, Héctor Timerman. Nisman baseava a acusação em provas contundentes de que o memorando firmado com o Irã para permitir o interrogatório de suspeitos de ligação com o atentado não passava de uma fachada para encobrir um acordo paralelo. Pelo acerto, em troca de petróleo, a Argentina cederia ao Irã carne, armas e tecnologia nuclear para produzir água pesada, essencial ao reator de plutônio mantido em Arak às escondidas dos inspetores internacionais. O acordo, iniciado pela intermediação da Venezuela de Hugo Chávez, incluía ainda impunidade para os suspeitos iranianos. Quatro dias depois de apresentar sua denúncia, Nisman foi encontrado morto no apartamento que alugava no 13º andar da luxuosa torre Le Parc, em Puerto Madero. A cena do crime foi violada, de modo a tornar impossível concluir se ele se matou, foi forçado a se matar – ou foi assassinado.
As reviravoltas convolutas do caso Amia e o enigma deixado pela morte de Nisman são os eixos centrais de Nisman debe morir,lançado há dois anos por Daniel Santoro, um dos mais respeitados jornalistas investigativos argentinos, hoje na equipe do Clarín. Sem omitir o lado controverso de Nisman – além de mulherengo inveterado, ele foi acusado de receber dinheiro não declarado numa conta secreta de sua família nos Estados Unidos –, Santoro confirma as principais acusações contra Cristina. Revela detalhes sobre as negociações com o Irã que acabaram por levar à reiteração, pela Justiça argentina, da inconstitucionalidade do famigerado memorando – cancelado no primeiro dia do governo do presidente Mauricio Macri. Áudios interceptados com autorização judicial, que Nisman nem mesmo incluíra na denúncia, demonstraram que o chanceler Timerman declarava saber que os iranianos eram os verdadeiros mentores do atentado. Arquivada ainda em 2015, a denúncia de Nisman foi então reaberta à luz das novas evidências. O atual juiz responsável pelo caso, Claudio Bonadio, deu a entender, segundo publicou na semana passada o jornal La Nación, que poderá aceitar, antes das eleições legislativas de outubro, uma nova denúncia contra Cristina pelos crimes imputados por Nisman, acrescidos de traição à pátria e prevaricação. Nas eleições, Cristina concorre ao Senado.
Como o Brasil, a Argentina tenta se reerguer sobre os escombros de quase 13 anos de gestão temerária do patrimônio público. Em nosso caso, os governos petistas; no deles, a era K. O noticiário local é tomado por denúncias de corrupção em série contra remanescentes dos governos Kirchner, como o ex-ministro do Planejamento Julio de Vido (também envolvido nas negociações com o Irã) ou a procuradora-geral da República, Alejandra Gils Garbó (desafeta de Nisman). A exemplo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do atual presidente, Michel Temer, respectivamente recém-condenado e recém-denunciado por corrupção, a Argentina também já teve sua cota de escândalos presidenciais. Um ex-presidente já foi condenado (Menem); Cristina foi denunciada por obstrução da Justiça enquanto estava no cargo – e enfrenta ainda denúncias de corrupção descritas noutro livro de Santoro, La ruta del dinero K (A rota do dinheiro K).
Há, contudo, duas diferenças essenciais entre a situação no Brasil e na Argentina. A primeira é econômica. Lá, a inflação oficial foi de 12% apenas no primeiro semestre, sem sinal de que o governo Macri tenha conseguido desfazer a armadilha populista que torna insustentáveis os gastos públicos. Aqui, a bomba inflacionária foi desarmada e a economia recupera o fôlego. A segunda diferença é que, por lá, a Justiça tem se demonstrado incapaz de desfazer os laços de compadrio que mantêm o poder refém da aliança entre corruptos e corruptores. Nada há de parecido com a Operação Lava Jato. Os principais postos na Justiça e no Ministério Público continuam a ser operados por interesses políticos. Também há aqui quem questione a motivação de juízes e procuradores. Mas ainda não foi encontrada conta secreta ligada a nenhum – e as mortes misteriosas só existem no universo das teorias conspiratórias.
Fonte: revista “Época”
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