Deve mesmo haver uma diferença entre ficar e se sentir velho. Como me disse outro dia um jovem médico com benevolência, eu era um jovem de idade. Se assim for, você sabe que ficou (mas que não está) velho quando o passar dos anos – com todas as alegrias, sucessos, doenças, vergonhas, decepções e sofrimentos neles contidos – conferem a você uma inesperada energia e uma imutável e até mesmo intrusiva juventude, pois – que me desculpem os cultores das visadas reducionistas: biológicas, econômicas ou políticas – o simbólico é justamente o ar que escapa do pneumático. O que tem me surpreendido no meu abençoado encontro íntimo e singular com esse mestre dos mestres, o infindável e inexorável senhor Tempo, é descobrir os que não manifestam nenhum estranhamento diante da vida. A começar, pela consciência de que este nosso mundo é maravilhoso porque – embora a morte esteja ao redor e dentro de nós – somos todos englobados pela vida. Há bilhões de astros que brilham no céu eterno e infinito, mas são mortos ou acesos demais para suportar esta nossa vida que enlaça tudo com tudo.
O caminhar com o Tempo tem me levado a perceber como eu me diferencio dos realistas reducionistas que, sem o senso do transitório como milagre, continuam acreditando que tudo é mesmo “político” no sentido cru e nu da expressão. Deste modo, os fatos seriam rasos e sempre motivados por interesses ou mentiras que bobocas como eu não conseguem enxergar. Nada como uma fórmula eterna para escapar da finitude e deixar de lado esse outro efeito da passagem pelos dias: o extraordinário peso das lápides que vão se acumulando nas nossas cabeças.
Lápides que, como os livros, emparedam histórias, e moralidades. “Romances”, como me disse um dia, faz mais de meio século, em belo tom romântico, uma desdentada senhora sertaneja que vivia ao longo dos caminhos pouco trilhados que me levavam a aldeias indígenas a serem evitadas de tão primitivas, pobres, selvagens e animalescas que eram como, até hoje, querem alguns políticos.
“Minha vida, seu doutor menino, é um romance”, disse ela, ao lembrar de dois casamentos: um por arranjo patriarcal pois, menina e bela, havia sido comprada por um comerciante “potentado” por alguns sacos de feijão; o outro, por paixão arrebatada que a fez pular a janela entre aqueles abraços apertados que nos dão tontura e cegueira.
Todos temos vidas de romance. Nossos momentos mais sublimes e nossas horas mais duras, vergonhosas e amargas, são todas histórias maravilhosas desde que contadas. Desde que postas em algum lugar fora do mundo por um narrador que as enquadrem e transformem em lenda, poesia, confissão, filme, anedota, exemplo ou milagre porque adquirem um início, um miolo e um fim. Pois todo relato tem uma primeira e uma última vez; tem uma palavra lacrimejada, inicial; e um adeus definitivo: arrematador e derradeiro. Essa propriedade conferidora de plenitude humana que o narrar, o recapitular, o rememorar e – eis uma bela e nobre palavra – o recordar: o falar com o coração, o relato em que o humano se revela por inteiro porque está com os outros – realiza. Eis a base e o solo no qual vivemos e, depois, somos enterrados. Mas, graças às nossas vidas contadas, ressurgimos em histórias que, imediatamente, pelo milagre da transitoriedade, tornam-se exemplo. É esse ser santo ou filho da puta que nos liquida já no hospital, no velório ou no funeral, pois todo mundo vive e morre muitas vezes.
Muitos gostariam mesmo de ser comidos por vermes e não pelas histórias que produziram e pelas quais serão sempre lembrados. Só a visão preconceituosa, racista, populista ou dogmática afirmaria que algumas existências (vividas em meio ao luxo nababesco, ao poder supremo e despótico, na extrema miséria, no limite da irresponsabilidade pública tão nossa conhecida, na doença sofrida e incurável) não teriam (ou dariam) um romance. Quando, na verdade, a humanidade toda é romance. É motivo. É um caso sempre realizado pela palavra porque é desejo, erro, maldade, generosidade e ponto de vista. Tal como a história que me foi relatada e que terminava com um glorioso: “Então, doutor menino, eu fui obrigada a seguir aquele moço que me queria de verdade e fugi de casa sem receber a bênção do meu pai…”
O velho conto na moça roubada e amaldiçoada; da sertaneja pobre, feia e velha que ia ficando rica, jovem e bonita na medida em que se romanceava e si mesma e, graças aos meus ouvidos, ia tecendo o encontro e promovendo essas heranças feitas de indiferença, ressentimentos, verdades relativas, terríveis vergonhas e culpas justificadas. Essas intenções claras e resultados imprevistos. Na vida, temos de fingir que sabemos (e suportamos) os eventos imprevistos; na arte (e nas histórias), ficamos sabendo exatamente como o caso terminou, embora jamais possamos saber como nossas vidas vão se fechar. No meio dessas recorrências, meu caro, você descobre que permaneceu jovem, mas envelheceu.
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