Elas não sabem o que é escritório físico, parede colorida ou mesa de pingue-pongue. Começaram a operar a distância, com trabalho remoto, usando a nuvem, as videochamadas e apostando nas tendências de comportamento de um mundo que ninguém sabe como funciona direito. Em meio às incertezas do período de isolamento social, uma geração de startups – as “quarenteners” – está “abrindo suas portas” e conquistando seus primeiros clientes. De um app que recomenda filmes para quem decidiu ficar em casa a um serviço que ajuda a economizar na conta de luz, essas empresas já nascem adaptadas a hábitos que, seja pela crise econômica ou sanitária, podem se tornar padrões nos próximos tempos.
Algumas delas foram inclusive fundadas a partir da segunda quinzena de março, quando a pandemia do coronavírus fez uma parte dos brasileiros ficarem em casa. É o caso da Chippu (“dica”, em japonês), que dá dicas de filmes e animes para quem não sabe o que assistir em meio ao tédio da quarentena. “Muita gente gasta meia hora só tentando escolher um filme na Netflix. Podemos resolver isso com algoritmo e curadoria, dando dicas em alguns segundos”, diz o jornalista Thiago Romariz, que se uniu a dois amigos para lançar o serviço. Só que não presencialmente.
De Curitiba, ele executou a parte editorial e de conteúdo do app, enquanto os dois sócios, em Brasília, programavam o aplicativo, lançado no final de maio. “Era um projeto que eu tinha há uns dois anos. Quando começou a quarentena, vi que o problema das pessoas em escolher o que assistir aumentou. Aí resolvi ir pra cima”, conta ele. Em dois meses, o serviço já tem mais de 100 mil usuários e 1 milhão de dicas dadas. “A gente não esperava que fosse tão bem, tivemos até problema de servidor no começo. Mas o timing foi mais importante que a execução”, afirma.
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Além do sucesso em downloads, a empresa também já conseguiu parcerias comerciais com empresas como Telecine e James Delivery. Para os próximos meses, os planos são ambiciosos: até o final do ano, o app da Chippu ganhará versões em inglês e espanhol, para entrar nos EUA e no mercado latino. “Escolher o que assistir é um problema universal, então vamos aproveitar a oportunidade”, diz o empreendedor, que já lidera uma equipe de dez pessoas e negocia uma próxima rodada de aportes com investidores brasileiros e americanos.
Recomeço
Algumas das quarenteners vem de veteranos do ecossistema brasileiro. Fundador do iFood, Michel Eberhardt vendeu sua parte no app de delivery há alguns anos. Passou um tempo estudando e decidiu que era hora de recomeçar no início de 2019, quando criou a 2be Live, startup que é dona de um sistema para educação a distância. “Nossa ideia era criar um sistema para professores particulares darem aulas para alunos em qualquer parte do mundo, com plataforma já traduzida e preparada para educação. No máximo, para 20, 30 alunos”, afirma o executivo, que fundou a empresa ao lado de Antonio Curi, ex-Qualcomm e Electronics Arts. “O nosso plano era lançar o serviço em abril. Aí veio o coronavírus e passarmos a ser requisitados por escolas inteiras de uma vez só.”
Segundo Eberhardt, o diferencial da 2be Live é que ela foi pensado desde o início para servir para educação – ao contrário de plataformas de gigantes de tecnologia, que adaptaram produtos corporativos para o universo das escolas. Entre as funções, há a possibilidade de alunos e professores desenharem na tela e a de fazer quizzes durante aula, bem como uma playlist de atividades pré-determinadas. O plano mais barato da empresa custa R$ 99 ao mês e aumenta conforme a quantidade de horas de aula e de alunos conectados.
Além de atender o Brasil, a startup também está de olho no mercado internacional – já tem clientes nos EUA e um representante no Canadá; em breve, ganhará uma nova executiva na Europa. “Muitas faculdades já decidiram que vão ficar online no próximo ano letivo, mas ainda não sabem o que fazer, então podemos ajudar”, diz o executivo, que comanda uma equipe de quatro pessoas, numa conexão entre São Paulo e San Diego, onde mora Curi.
Questão de hábito
Se para a 2be Live as videochamadas são uma forma de comunicação interna e um mercado, para a recifense Hent elas se transformaram em uma oportunidade de acessar novos clientes. Criada no final de 2019 e com operações ativas desde março, a empresa é dona de um software que faz gestão para loteamentos residenciais, facilitando a cobrança desse tipo de empreendimento imobiliário.
“Uma boa parte dos nossos clientes é ‘raiz’. Normalmente, eles pediriam que a gente viajasse até a cidade deles para uma reunião”, diz o presidente executivo Leo Pinho, que em 2015 vendeu sua primeira empresa, a Kaplen, para o Itaú. “Com a pandemia, eles começaram a topar falar por videoconferência. Para nós, a quarentena ajudou porque mudou os hábitos dos clientes.”
Além de começar a operar na pandemia, a empresa também está crescendo seu time durante a quarentena – hoje, tem sete pessoas e deve contratar mais quatro nos próximos meses. As contratações estão sendo bancadas com recursos de uma rodada recente de aportes, avaliada em R$ 5 milhões e liderada pelos fundos Canary e Norte Capital, além de investidores-anjo como Brian Requarth, cofundador do VivaReal. Antes disso, a Hent passou pela aceleração da Y Combinator (de Rappi e Airbnb), no Vale do Silício. Até o final do ano, a empresa espera administrar 45 mil lotes e também entrar em um novo pilar de negócios: crédito, tanto para os loteadores quanto para os clientes.
Luz
Companheira de fundo da Hent, a startup Clarke recebeu seu primeiro aporte da Canary em janeiro e lançou seu primeiro aplicativo em junho. Sua meta? Ajudar as pessoas a lidar melhor com sua própria de conta de luz, identificando gastos, parcelando a tarifa ou identificando serviços que podem reduzir custos – como a indicação de serviços de instalação de energia solar. A companhia, liderada pelo engenheiro Pedro Rio, também ajuda clientes corporativos a lidarem com os gastos de energia – mostrando, por exemplo, se eles podem gastar menos ao adotar a tarifa branca, com precificação em faixas horárias, do que a tarifa normal.
“Usamos inteligência artificial pra identificar tendências de gastos e analisar a conta de luz. No futuro, queremos ser uma solução única para energia, até ajudando as empresas a usar energia limpa e barata”, diz Rio, que hoje tem cerca de 80 clientes. Essa visão de futuro depende, no entanto, de mudanças regulatórias, como a criação de um mercado livre de energia – em prática nos EUA, por exemplo, esse sistema permite que o consumidor escolha de qual tipo de usina deseja comprar a força que abastece sua casa.
Antes disso, porém, a empresa, que tem 9 funcionários, enxerga boas oportunidades para os próximos meses. “Somos feitos para os tempos de crise, porque podemos ajudar as empresas a cortarem custos”, diz Rio. Para ele, é um paradigma que as startups criadas agora vão ter de enxergar.
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Tempos de crise
Quem também acredita nisso é Flávia Coelho, criadora da Mobees – startup carioca que quer ajudar motoristas de aplicativo a ter uma renda extra colocando telas de LED no topos dos carros, para exibição de publicidade. “O setor de mídia fora de casa (out of home, no jargão do termo) sempre teve muito problema para gerar números confiáveis, mas podemos fazer isso com tecnologia”, explica ela, que, junto a dois sócios, criou um sistema capaz de medir quantas pessoas estão na rua sendo expostas aos anúncios.
Por enquanto, as telas de LED estão rodando em 100 carros no Rio de Janeiro – são duas telas por carro, que exibem anúncios rotativamente de acordo com a demanda dos clientes, em uma lista que já inclui nomes como Descomplica, Unimed Rio e Motorola. “Podemos exibir uma campanha dependendo da rua, da temperatura e até mesmo da hora do dia”, explica Flávia.
Segundo ela, mais de 10 mil motoristas estão na fila de espera da empresa, que paga R$ 1 mil para os condutores rodarem por aí com seu sistema. Apesar de já ter captado recursos – em um aporte de R$ 5 milhões –, a empresa espera passar pouco tempo rodando no vermelho, até pelo momento difícil da economia. “Não queremos ser uma empresa que consome recursos do caixa por meses a fio, não faz sentido”, diz Flávia.
Pinho, da Hent, vai na mesma linha. “Nascemos na crise e mesmo se as coisas melhorarem, vamos continuar assim. O desejo de toda startup é ser unicórnio, mas nós vamos ser o camelo”, diz, fazendo referência a um termo que também ganhou popularidade no setor durante a quarentena. “Afinal, o camelo consegue suportar condições adversas, caminhar pelo deserto e sobreviver. É o que queremos fazer.”
Fonte: “Estadão”