Na noite de domingo, após vencer as eleições, Dilma Rousseff, apresentou enfim a síntese de seu programa de governo. Num discurso escrito, sem margem para improvisos, listou suas metas e, acima delas, seus compromissos democráticos. No que afirma sobre a imprensa, o texto dificilmente poderia ter sido mais oportuno.
“Zelarei pela mais ampla e irrestrita liberdade de imprensa”, proclamou Dilma Rousseff.
Aparentemente, a presidente eleita disse o óbvio: como chefe de Estado e de governo, só o que lhe compete, nessa matéria, é zelar pela liberdade plena. Nada de novo. Mas, aqui, o óbvio é especialmente bem-vindo. Na ressaca das violências verbais da campanha, essas poucas palavras adquirem um valor único. Lembremos que, neste ano eleitoral, o presidente da República, em pessoa, atacou a imprensa em várias ocasiões. No dia 20 de setembro, no Tocantins, ele chegou a impor condicionantes à liberdade: “A liberdade de imprensa não significa que você possa inventar coisas o dia inteiro. (…) Significa que você tem a liberdade de informar corretamente a opinião pública, para fazer críticas políticas, e não o que a gente assiste de vez em quando”.
Segundo a hermenêutica lulista, a liberdade não é nem pode ser irrestrita. Teriam direito a ela apenas aqueles que informam “corretamente a opinião pública”. O que nos traz um enigma: o que seria, então, “informar corretamente”? Ora, muito simples: “informar corretamente” é aquilo que o chefe de Estado acha que é “informar corretamente”. A conclusão é inevitável: quem abraça esse raciocínio não acredita em liberdade irrestrita.
Dilma pensa diferente, ainda bem. Com extrema elegância, ela discorda de Lula. Ambos conheceram na pele os danos que o jornalismo irresponsável pode causar; poucas pessoas foram tão feridas por notícias mal apuradas, ilações maldosas, calúnias enviesadas, baixezas inomináveis em blogs, jornais e revistas. Mas cada um deles enxerga trilhas diferentes para a melhoria da imprensa.
Lula, conforme deixou claro em seus comícios, acredita que o chefe de Estado pode sair por aí passando pitos em editores, articulistas e repórteres. Ele semeou a polarização e a intolerância, como se imprensa livre fosse um privilégio de classe. Lula é um democrata, não há dúvidas; é um grande vulto da História do Brasil, que nos orgulha a todos. Mas, nesse capítulo, promoveu a discórdia e a confusão, desnecessariamente.
A boa notícia é que o primeiro discurso de Dilma aposta em outro rumo. Ela certamente não ignora as mazelas do jornalismo pátrio, mas parece crer na velha máxima segundo a qual os problemas da liberdade de imprensa só se resolvem com mais liberdade de imprensa. Vejamos outra passagem de seu pronunciamento: “Não nego a vocês que, por vezes, algumas das coisas difundidas me deixaram triste. Mas quem, como eu, lutou pela democracia e pelo direito de livre opinião arriscando a vida; quem, como eu e tantos outros que não estão mais entre nós, dedicamos toda a nossa juventude ao direito de expressão, nós somos naturalmente amantes da liberdade. (…) Prefiro o barulho da imprensa livre ao silêncio das ditaduras. As críticas do jornalismo livre ajudam ao País e são essenciais aos governos democráticos, apontando erros e trazendo o necessário contraditório.”
Com essas declarações a presidente eleita deixa para trás as impropriedades que apareceram na primeira versão do seu programa de governo, registrada no Tribunal Superior Eleitoral no início de julho. O documento trazia uma avaliação negativa do comportamento dos órgãos de imprensa – o que era exatamente isso, uma impropriedade, uma vez que não faz parte das atribuições do Poder Executivo tomar medidas para melhorar o jornalismo. Aquela primeira versão do programa, segundo noticiou a Agência Estado, em reportagem Marcelo de Moraes (5/7), afirmava que “a maioria da população brasileira conta, como único veículo cultural e de informação, com as cadeias de rádio e de televisão, em geral, pouco afeitas à qualidade, ao pluralismo, ao debate democrático”. Na sequência, prescrevia a adoção de “medidas que promovam a democratização da comunicação social no país, em particular aquelas voltadas para combater o monopólio dos meios eletrônicos de informação, cultura e entretenimento”.
Além de descabidas, as opiniões da primeira versão do programa resultavam num enlouquecimento da ideologia: crer que os governos possam sanear e aprimorar reportagens e editoriais. É fato que as democracias adotam leis para inibir monopólios e oligopólios na radiodifusão, mas isso com a finalidade de assegurar concorrência comercial e diversidade de vozes, nunca para melhorar os conteúdos. Governos são incapazes de melhorar conteúdos de TV. Nesse campo, não é função do Poder Executivo ditar balizas de “qualidade” para a imprensa. A não ser que queiramos viver numa ditadura.
Para sorte da democracia brasileira, a primeira versão do programa de Dilma logo foi revogada e substituída. Vieram outras. Agora, o discurso da noite de domingo nos serve de síntese final. No que diz sobre a imprensa, está de bom tamanho. Finalmente. É claro que os erros dos jornais podem e devem ser discutidos pelos cidadãos, e mais ainda durante as campanhas políticas, mas não há sentido institucional na inclusão desse tópico na plataforma de um candidato a governante. À Presidência da República, como bem disse Dilma Rousseff, cabe apenas “zelar pela mais ampla e irrestrita liberdade de imprensa”, o que não é pouco. O resto é com a sociedade e, em alguma medida, com o Poder Legislativo e o Poder Judiciário.
Que a nossa sociedade, a nossa legislação e a nossa Justiça, com o engajamento declarado da nova presidente da República, assegurem ao nosso povo uma liberdade de imprensa verdadeiramente irrestrita.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 04/11/10
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