O período de ouro para as famílias brasileiras, que nos últimos dez anos consumiram como nunca, compraram automóvel, viajaram para o exterior pela primeira e viram a distância entre ricos e pobres se reduzir, está próximo do fim. Depois de dez anos de aumentos reais, a renda deve experimentar a primeira queda real — que pode chegar a 5%, nas estimativas mais pessimistas de estudiosos do mercado de trabalho — ou ficar, no melhor dos casos, na estabilidade. Com o desemprego mais elevado, uma inflação estimada em 7,5% e dificuldades para fechar reajustes nas negociações salariais, 2015 pode ser o ano com a maior redução para o poder de compra dos trabalhadores desde 2002.
A renda nas principais regiões metropolitanas do país subiu 33,1% acima da inflação desde 2004. Para muitos, tratou-se de um período atípico, não apenas pela alta prolongada do rendimento — o salário mínimo, por exemplo, avançou 76,54% desde 2002 —, mas porque coincidiu com uma alta nos preços de alimentos abaixo da inflação média nos primeiros anos da década e com a queda nos artigos eletroeletrônicos.
— Com a ausência de crescimento econômico e com a inflação alta, o grande castigo virá pela queda no rendimento, o que complica ainda mais uma retomada do crescimento. A década de bonança acabou — afirma o economista Claudio Dedecca, da Unicamp, que estima recuo de 5% ou até superior neste ano. — Desde 2012, o parco crescimento do PIB se dava por conta do mercado de trabalho, que elevava o consumo. Com a renda em declínio, e o investimento que não consegue ser destravado, o crescimento fica comprometido.
Menos carros e eletrodomésticos
Ao contrário da inflação registrada nos primeiros anos do governo Lula, que também contou com queda real na renda (em 2004 frente ao ano anterior, houve recuo de 1,3%, descontados os efeitos da inflação) na esteira da alta do dólar e da desconfiança dos mercados com o governo petista, hoje, as principais pressões para a alta de preços vêm de tarifas, combustíveis e alimentos. Essa composição atinge de forma mais direta trabalhadores com renda até três salários mínimos.
— Os grupos de renda média baixa vão sofrer mais porque concentraram os maiores ganhos na última década e agora terão o maior efeito da alta da taxa de desemprego — calcula o economista da Opus Gestão de Recursos e professor da PUC-Rio José Marcio Camargo, que espera recuo de até 2% na renda, descontados os efeitos da inflação.
A renda média ainda deverá crescer nos dois primeiros trimestres deste ano, sob influência do aumento do salário mínimo. O quadro deverá começar a virar no segundo semestre, com queda de 0,7% no quarto trimestre frente ao mesmo período do ano passado. A renda encerrará o ano estável, pelas estimativas da FGV/Ibre.
Já o espaço para o consumo de bens, veículos, eletrodomésticos deverá ter a maior retração desde 2003. A renda disponível das famílias, ou seja, aquela que desconta o peso de itens essenciais no orçamento, como transporte, alimentação e bebida, deve registrar um recuo de 2,1% neste ano, de acordo com o economista Rodrigo Baggi, da Tendências Consultoria.
Desigualdade deve voltar a crescer
O encanador industrial Carlos Eduardo Lima Rodrigues já sente os efeitos da renda menor. Funcionário da Alumini (ex-Alusa), que prestava serviços no Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), não recebe salário desde novembro. Sem a renda de cerca de RS 2.500 mensais, a família sobrevive de bicos e do salário de cerca de R$ 800 que a mulher de Carlos Eduardo recebe em uma farmácia. A família teve de tirar a filha de nove anos da escola particular e suspender as prestações do carro usado, enquanto o Ministério Público do Trabalho do Rio tenta uma ação para reembolsar os trabalhadores dos meses atrasados.
— Meus cartões estão todos atrasados. Não posso arranjar outro emprego porque minha carteira de trabalho continua retida, e estamos a ver navios — afirma Rodrigues.
Para o coordenador de relações sindicais do Dieese, José Silvestre, as negociações coletivas deverão ficar mais difíceis neste ano, mesmo que ainda obtenham um aumento real:
— Embora as projeções indiquem que a economia brasileira viverá uma recessão, haverá diferenças nos resultados das negociações entre os diversos setores. A indústria poderá apresentar resultados médios abaixo daqueles que deverão ser observados em outros setores.
A queda na renda também deverá empurrar de volta ao mercado de trabalho os jovens que, nos últimos anos, preferiram se dedicar aos estudos. A participação dos jovens entre 15 e 24 anos que trabalhavam ou buscavam emprego hoje está em 59%. Em 2004, era de 64%.
— Não deve acontecer imediatamente, mas no ano que vem, porque existe um círculo virtuoso dos últimos dez anos ainda muito forte para o consumo — avalia Naércio Menezes Filho, do Insper.
O economista Gustavo Gonzaga, da PUC-Rio, também vê a influência do período de “vacas gordas” nesse movimento:
— Como a renda está em alta há muito tempo, houve um período longo em que as pessoas fizeram um colchão. Outros membros vão voltar ao trabalho, mas será uma volta lenta e que vai aumentar o desemprego.
A melhora do mercado de trabalho na última década foi o principal vetor para a redução de desigualdades sociais e respondeu pela ascensão social de uma nova classe média. E a queda real da renda, corroída pela inflação, não deverá deixar incólumes os ganhos sociais obtidos. A economista do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets) Sonia Rocha lembra que a alta da renda respondeu por cerca de 60% da redução da desigualdade no país entre 2003 e 2013. Agora o quadro deverá mudar:
— Havendo queda da renda do setor de serviços, que é o grande empregador das pessoas menos qualificadas, o impacto é certeiro sobre a pobreza e a desigualdade — estima Sonia.
Dedecca também vê uma grande chance de a desigualdade crescer por causa do aumento mais contido do salário mínimo.
— Um aumento da desigualdade de renda tem razoável probabilidade, considerando a evolução desfavorável da renda do trabalho, de um lado, e uma taxa de juros real elevada, de outro, além do controle fiscal que rebaterá negativamente sobre as políticas sociais — afirma.
Fonte: O Globo
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