A Argentina voltou a assustar com uma crise cambial. Mas, com a perda de relevância de sua economia, o estrago que pode causar à sua volta é limitado
Nos últimos tempos, a condução das políticas econômicas na América Latina pode levar um observador a ter a seguinte impressão: o Brasil quer ser a Argentina, a Argentina pretende ser a Venezuela, e a Venezuela almeja ser Cuba. Felizmente, estamos muito longe da Argentina — mas é inegável que estamos nos afastando da política econômica mais ortodoxa dos governos anteriores.
Em janeiro, o Brasil se inspirou nos argentinos, que manipulam seus dados de inflação há anos, para melhorar o saldo da balança comercial. Ao registrar a exportação fictícia de plataformas da Petrobras que nunca deixarão o país, o Brasil alcançou um superávit comercial de 2,6 bilhões de dólares.
Foi o pior resultado desde 2000, mas sem a manobra (que é legal, diga-se) admitiríamos um déficit de mais de 5 bilhões de dólares. Bom, espera-se que o uso da contabilidade criativa (tão aperfeiçoada pelos argentinos) pare por aí — mesmo porque a Argentina parece firme no propósito de se tornar a aloprada Venezuela.
Nada do que está acontecendo na Argentina é desconhecido na histórica econômica da América Latina. O país se encontra outra vez numa crise porque há anos persegue um roteiro amplamente sabido de caminhada para o abismo — algo que a própria Argentina já viveu nos anos 80 e no começo dos 2000.
A sequência de eventos começa com um governo que gasta demais e precisa financiar o déficit fiscal com a emissão de moeda. Com isso gera inflação, que, por sua vez, leva a uma desvalorização cambial. Na tentativa de impedir que o dinheiro perca ainda mais valor, o governo passa a controlar o câmbio e a dificultar a saída de dólares.
As intervenções afugentam investidores e consomem reservas. É justamente nesse ponto que se encontra, mais uma vez, a Argentina. Nos últimos 27 meses, o país queimou 15 bilhões de dólares em reservas para manter o peso artificialmente valorizado.
A estratégia reduziu 34% do valor de suas reservas internacionais, hoje em 30 bilhões de dólares (no Brasil, elas somam 376 bilhões). Com pouco dinheiro em caixa, a Argentina parou momentaneamente de intervir no câmbio — e o peso rapidamente começou a desvalorizar.
Há quem diga que a estratégia foi calculada para tentar recuperar a competitividade dos produtos argentinos. Em se tratando do governo de Cristina Kirchner, há dúvidas se a equipe econômica liderada por Axel Kicillof compreende o tamanho do problema.
Em resposta à desvalorização do peso, o governo lançou mão de medidas desesperadas — e igualmente ineficazes — para tentar conter a fuga de dólares. Em 22 de janeiro, novas regras para as compras pela internet foram criadas, limitando as aquisições de cada consumidor em sites internacionais a 25 dólares por ano livres de impostos — quem gasta mais passa a ser tratado como um importador.
Um dia antes, a Receita Federal argentina começou a exigir de quem compra online a apresentação de uma declaração juramentada para liberar na alfândega as encomendas que vêm do exterior. Obviamente, nada disso adiantou. Na quinta-feira 23 de janeiro, o dólar paralelo era cotado a 13,40 pesos, ante 7,75 no câmbio oficial — maior desvalorização desde 2002.
Diante de mercados globais atônitos com uma nova crise cambial na Argentina, o governo de Cristina promoveu uma reviravolta: na sexta-feira 24, anunciou que os argentinos poderiam voltar a comprar dólares para investir, o que estava proibido desde julho de 2012. Ou seja, num dia o governo limitou o acesso da população ao dólar e no outro permitiu que ela voltasse a poupar em moeda estrangeira.
“O governo estava perdendo reservas com o câmbio sobrevalorizado”, diz Alberto Ramos, diretor de pesquisas para a América Latina do banco Goldman Sachs. “Não dá para perder dinheiro diariamente. Essa razão é a mais plausível do vaivém.” Outra explicação é que a intervenção tinha o objetivo de corrigir uma distorção no mercado de câmbio.
“Todo mundo queria comprar dólar, mas ninguém queria vender. Isso criava um abismo entre a cotação oficial e o valor no paralelo”, afirma Tony Volpon, chefe de pesquisas para mercados emergentes das Américas do banco japonês Nomura Securities.
A semana em que o governo argentino beirou a esquizofrenia levou analistas do mercado financeiro global a se questionar se a crise de 2001, que culminou no calote da dívida do país, seria reeditada mais de uma década depois. A dúvida não durou mais do que um dia.
A Argentina experimentou uma espécie de celebridade momentânea no noticiário econômico mundial. A depreciação vertiginosa de sua moeda — uma queda de quase 20% em dois dias — coincidiu com uma desconfiança generalizada dos investidores em relação aos mercados emergentes.
Há razões específicas para cada país, como a desaceleração da China e um estresse político na Turquia. E uma incerteza em relação ao efeito que terá sobre todos é a futura redução de estímulos do banco central americano.
Nesse contexto, renasceu o temor de que a Argentina fosse novamente o estopim de uma crise mais ampla nos emergentes. Mas rapidamente ficou claro que o peso de sua economia — e seu potencial de causar estrago — não é mais o mesmo de antigamente.
Desde o calote de 2001, o país se mantém isolado. No setor financeiro, a Argentina perdeu o acesso ao capital internacional. Ainda tem contas a acertar com vários credores. Só para o Clube de Paris, que reúne 19 países ricos, as dívidas chegam a 10 bilhões de dólares — o ministro Kicillof se reuniu com representantes do grupo recentemente e tenta uma renegociação.
A bolsa de Buenos Aires é insignificante, movimentando apenas 11 milhões de dólares por dia (a Bovespa gira 2 bilhões). Do ponto de vista do comércio global, a Argentina também encolheu. Em 2004, participava com 9% nas exportações mundiais de carne bovina. Agora responde por pouco mais de 2%. O mesmo vale para o trigo: detinha 8% do mercado global e hoje tem 2,5%.
Falta de credibilidade
A Argentina de Cristina Kirchner também passou a ser o país das estatísticas desacreditadas. As medidas da inflação e do PIB são as mais notoriamente manipuladas, mas não são as únicas. Estimativas de analistas em relação à safra de milho de 2013 equivaliam a um terço das projeções oficiais.
Desde 2009, os dados sobre crimes deixaram de ser publicados. “A Argentina nem reconhece a inflação elevada”, afirma William Rhodes, ex-vice-presidente do Citi e um dos responsáveis por negociar as dívidas de emergentes na década de 80. “Seria bom se o país criasse uma versão do que foi o Plano Real, com metas claras. Isso ajudaria a recuperar a confiança na moeda.”
E qual é o efeito da confusão do vizinho na economia brasileira? Os impactos devem ser limitados. Mas a proximidade geográfica e a parceria comercial fazem com que o Brasil quase sempre perca quando os argentinos aprontam. No ano passado, foram exportados daqui para lá 19 bilhões de dólares — grande parte em automóveis e autopeças.
Os exportadores brasileiros de manufaturados são os que mais têm motivo para chorar pelo infortúnio argentino. De acordo com o economista Celso Toledo, sócio da LCA Consultores, uma nova crise na Argentina pode impor perdas de 5 bilhões de dólares ao saldo comercial brasileiro.
Estima-se que, a cada 10% de redução nas exportações para o vizinho, o PIB brasileiro possa cair 0,2 ponto. A crise também pode comprometer a negociação de um acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, que o Brasil tenta empurrar. Os argentinos têm resistido a uma liberalização para atrair os europeus.
O Mercosul, que já foi o motor da América Latina, deve perder a vez para a Aliança do Pacífico, bloco criado por Chile, Colômbia, México e Peru em 2012. Até 2022, o crescimento anual desse grupo deve ser de 3,8%, ante 3,1% do Mercosul.
A economia não é uma ciência como a química, que permite reproduzir em laboratório experimentos a ser comparados. Curiosamente, a América Latina virou um território onde políticas opostas vêm convivendo nos últimos anos. De um lado, países como Argentina e Venezuela seguem a cartilha do Estado forte, do intervencionismo e do protecionismo.
De outro, Chile, Peru e Colômbia optam por um mercado aberto e mais espaço para o setor privado. Os resultados de uns e de outros estão à vista de todos. Qual é mesmo o modelo que queremos copiar?
Fonte: Exame
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