Por Nery, Tafner e Fraga
Em artigo publicado no Valor do dia 17, Andrei Roman faz críticas a artigo de nossa autoria publicado no dia 13, no Estado de S. Paulo, no qual comentamos o artigo publicado por Thomas Piketty com críticas infundadas sobre efeitos da reforma da previdência. Aqui, vamos limitar a discussão à reforma aprovada em primeiro turno, já conhecida quando esta troca se iniciou.
Sem convergência sobre os fatos não há debate possível. Primeiro, Roman afirma que há apenas um erro de redação que, uma vez corrigido, manteria íntegras as demais críticas de Piketty. O equívoco seria tratar a fórmula 85/95, uma exigência para cálculo do benefício, como requisito para aposentadoria. Mas há outros.
Há erro também quando Piketty trata do fator previdenciário. Este é aplicável predominantemente à aposentadoria por tempo de contribuição, não à por idade, ainda que possa excepcionalmente ser utilizado nesta para elevar-lhe o valor. O texto sugere, assim, que a reforma atua sobre regras já muito restritivas: já haveria critério de idade na aposentadoria por tempo de contribuição e, nos demais casos, o fator reduziria benefícios de acordo com a expectativa de sobrevida.
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Em terceiro lugar, a reforma não eleva o tempo mínimo de 15 para 20 anos das mulheres. Elas são 65% de quem usa a aposentadoria por idade e integravam os dados citados no artigo sobre quem não iria conseguir se aposentar.
Por fim, a reforma não tira CSLL e Cofins do déficit da Previdência, deixando os custos somente para tributação na folha. Em poucas palavras, não há apenas um pequeno erro de redação, como interpreta Andrei Roman. Há diversos erros factuais: o texto de Piketty é uma crítica a uma reforma que não existe de uma previdência que também não é a que descreveu.
Mas o ponto central de Roman, endossando posição de Piketty, é que a “reforma irá aumentar a desigualdade”. A conclusão se baseia na observação de que “91% da economia da reforma está concentrada na assistência social e no regime geral, onde 90% dos trabalhadores recebem até 2 salários mínimos.” Segundo Roman, quando se refere ao artigo de Piketty, “o artigo não traz novidade do ponto de vista da análise de dados, mas explica de forma didática que a reforma vai atrasar e até inviabilizar a aposentadoria de milhões de brasileiros pobres, com custos imediatos para a igualdade social.”
De onde sai isso? Da informação de que o tempo mínimo de contribuição subiria de 15 para 20 anos. Mas isso não ocorreu. Então o que sobra da peremptória afirmação de que a reforma produzirá aumento da desigualdade? Afirmar que 91% da economia vem da assistência e do regime geral, tendo em vista as alterações feitas durante a tramitação é insuficiente.
Resposta abrangente para a desigualdade exigirá mais ajustes
na previdência e ajustes nas regras tributárias.
De fato, algo como 70% do impacto fiscal recai sobre o RGPS. Isso não informa acerca da desigualdade. O gasto previdenciário do RGPS é quase 5 vezes maior do que o gasto com o Regime Próprio e será ainda maior dada a dinâmica demográfica brasileira. É, portanto, natural que a maior parte da redução de despesa venha do RGPS. A questão relevante é identificar em que parte da pirâmide de renda recai o custo do ajustamento.
Dois terços dos benefícios pagos são de apenas 1 salário mínimo. Basicamente esses beneficiários não serão afetados pela Reforma. Muitos já se aposentam por idade, até aos 65 anos. Mesmo aqueles que se aposentarem por tempo de contribuição e que não cumpram os 40 anos de contribuição, tendo sua média inferior ao salário mínimo, terão garantido esse valor.
O mesmo, entretanto, não pode ser dito para aqueles que se aposentam por tempo de contribuição com valores maiores e que representam menos de 30% das aposentadorias programáveis e quase 40% da despesa. São indivíduos que se aposentam, em média, com 52 anos se mulheres, ou 56 anos, se homens e cujo valor médio do benefício é superior a R$ 2 mil. São exatamente esses beneficiários que serão mais afetados no âmbito do RGPS, pois terão que trabalhar e contribuir por mais tempo. Se não são ricos, estão longe de ser pobres quando comparados com a maioria de nossos cidadãos. São estes que sofreriam com o corte de outras políticas públicas, o aumento da tributação sobre o consumo, o desemprego e, no limite, também a inflação galopante.
E quem mais é afetado pela Reforma? Servidores públicos, seja por que terão as mesmas condições de aposentadoria dos demais, seja porque estarão sujeitos a alíquotas progressivas, reduzindo-lhes tanto a renda corrente quanto a renda de benefícios. Duas comparações dos impactos médios por pessoa da reforma (acumulados em 10 anos, estimativas da Secretaria de Previdência) ilustram o ponto: R$ 9,2 mil do Regime Geral, versus R$ 114,1 para os servidores públicos, ou seja, mais de doze vezes maior, além de proporcionalmente maior. No âmbito do RGPS, R$ 4,3 mil para os que se aposentam por idade versus R$ 25,9 mil para os que se aposentam por tempo de serviço.
+ Pedro Ferreira e Renato Fragelli: Retomada lenta mesmo
Ora, se quem é negativamente afetado pela reforma está nos estratos médios e superiores de renda, torna-se uma impossibilidade matemática o aumento da desigualdade, qualquer que seja o indicador utilizado. Piketty não foi difamado. Ele é que com seu título enganoso “a quem interessa aumentar a desigualdade” difamou os deputados que votaram a favor da reforma.
Olhando adiante, entendemos que uma resposta ainda mais abrangente para as questões da desigualdade e da falência fiscal exigirá mais ajustes na previdência, uma reforma nas regras do funcionalismo e ajustes nas regras tributárias, áreas individualmente repletas de iniquidades a corrigir, e capazes de liberar recursos para gastos sociais genuinamente progressistas e pró-crescimento.
Nossa esquerda acertou no combate à pobreza extrema com o Bolsa Família, mas com sua “bolsa empresário” e seu corporativismo falhou na construção de uma sociedade mais justa e mais próspera. É nosso mais sincero desejo que, com base em fatos e interpretações corretas, se chegue a uma ampla convergência quanto às reformas necessárias para um futuro melhor.
Fonte: “Valor Econômico”, 19/07/2019