Jair Bolsonaro pode não ser o presidente a que o Brasil faria jus, por mais que seus 57 milhões de votos lhe garantam o direito de estar onde está, mas é com certeza o presidente que a esquerda brasileira merece. Tente pensar um pouco nisso, toda vez que sua reserva de paciência com ele esquentar a ponto de estourar o termômetro – é um santo remédio. Com os adversários que Bolsonaro tem, na esquerda e nessa pasta liberal-intelectual-equilibrada-etc. que lhe faz companhia, é isso mesmo que dá para ter. O cálculo é bem simples. A denúncia capital apresentada contra o presidente, sobretudo nas regiões que se consideram as mais civilizadas da sociedade brasileira, é a sua falta de sintonia, segundo dizem, com as exigências dos regimes democráticos. E a esquerda nacional, então? Qual seria, exatamente, o grau de sua devoção à democracia? Alguma coisa abaixo do zero – e aí fica claro que, se o problema do Brasil é a hostilidade à democracia, então não é em Bolsonaro que está o problema.
A verdade nessa história, pelo que mostram os fatos da vida real, não tem altas complicações. Ela revela que um militante de esquerda verdadeiro, que está na atividade política para ganhar, tem de ser obrigatoriamente contra a democracia – se não for, estará sendo apenas um bobo. Ser de esquerda e, ao mesmo tempo, ser racional é ter exatamente o entendimento de Lenin, o criador do esquerdismo universal, sobre as questões políticas essenciais. Não há outro entendimento disponível – pois também não há nenhum outro conjunto de ideias que façam tanto sentido quanto as dele.
Ou o sujeito, na prática, segue a lógica de Lenin para construir e manter de pé um regime de esquerda, ou não chegará nunca a lugar nenhum. Pode até chegar – mas não fica. Para alguns, como se sabe, a coisa pode acabar num xadrez de polícia.
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Jamais houve lugar para a democracia num regime esquerdista feito para durar – não porque Lenin fosse um mau sujeito, mas porque tinha certeza de que era impossível existirem no mesmo espaço um regime socialista e liberdades democráticas. Não pode haver, por exemplo, eleições livres. Por quê? Porque os adversários podem ganhar e aí eles mandam o socialismo para o espaço. Não pode haver liberdade de imprensa porque a oposição vai usar essa liberdade para falar mal do governo, e isso é um perigo. Não pode haver a separação e independência de poderes. Um poder judiciário independente pode condenar os partidários e absolver os inimigos. Um poder legislativo livre pode aprovar leis que o governo não quer e rejeitar as que está querendo. É impossível ter Forças Armadas profissionais e subordinadas à lei, pois elas podem não cumprir as ordens do partido; os oficiais têm de obedecer aos comissários políticos, ou então quem está no governo não está de fato no poder. Tem de existir um partido só porque não pode haver oposição – e por aí vamos. Até hoje não apareceu nenhum sistema tão eficaz quanto esse para criar um regime de esquerda. Quem copiou, como Fidel Castro, se deu bem, ficou no poder até o fim da vida. Quem tentou fazer diferente se deu mal.
A esquerda brasileira não pensa em nada disso, porque tem medo de bala de borracha, quer viver de dinheiro do “Fundo Partidário” e tem preguiça de pensar – mas mesmo que pensasse não iria adiantar nada, porque não há meios, simplesmente, de se montar o sistema descrito acima. Ele segue regras feitas há mais de 100 anos, e o mundo em que esse catecismo valia não existe mais. A única saída, para o esquerdista de hoje no Brasil, é ser capitalista – e aguentar, aqui e ali, levar vaia em avião.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 24/11/2019