O especialista em Código Civil diz que a proposta de reforma da lei, em discussão no Congresso, vai aumentar o risco de os tribunais cometerem injustiças
Está em discussão no Congresso Nacional uma proposta de reforma do Código de Processo Civil. A ideia principal é diminuir o número de recursos de que os advogados podem lançar mão com o objetivo de acelerar a tramitação dos processos. Poucas pessoas até agora se dedicaram a analisar a fundo o que está sendo proposto para acabar com o abuso dos recursos. Antonio Cláudio da Costa Machado, de 52 anos, professor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo, autor do livro Código Civil Interpretado, é uma delas. Costa Machado tem fortes argumentos contra certos pontos da proposta de reforma, que, segundo ele, subtrai direitos basilares dos cidadãos e deposita poder demais nas mãos dos juizes de primeira instância.
Leia a entrevista:
A reforma do Código de Processo Civil pretende tornar mais rápida a tramitação dos processos – o que, em tese, é excelente. Por que o senhor tem combatido a proposta?
Antonio Carlos da Costa Machado: Todos concordam que a Justiça precisa ser mais ágil. Eu também. O tempo que se leva para julgar processos no Brasil é absurdo. Mas é ingenuidade imaginar que a mudança no código atual vá reduzir a lentidão do Judiciário. O grande problema da proposta que está sendo debatida no Congresso é que, em nome do aumento da velocidade, ela derruba pontos fundamentais para a garantia de isenção da Justiça. Para acelerar o ritmo do andamento do processo, a proposta concentra superpoderes nas mãos dos juízes de primeira instância.
Em que trechos da proposta esse risco aparece?
Machado: A legislação civil rege todos os processos que não envolvem crimes ou questões trabalhistas. Nesse conjunto temos uma ampla gama de fenômenos que englobam as relações de família, o direito de herança, as cobranças de dívidas, as disputas entre sócios, as questões de propriedade. Enfim, é a legislação civil que rege a vida em sociedade. O Código de Processo Civil estabelece como o juiz deve tratar as duas partes durante esses processos. Define como serão produzidas as provas, quais serão os prazos, como serão apresentados os recursos. É o manual que contém as regras do jogo e garante que as partes envolvidas vão ter a chance de obter uma decisão justa e o tratamento equânime diante do juiz. O nosso código, apesar de ter sido posto em vigor durante a ditadura militar, tem um caráter extremamente democrático, que permite que as partes se manifestem durante todo o processo. O projeto que pode ser aprovado agora acaba com essa possibilidade – por isso considero que ele tem um corte claramente autoritário.
Mas onde exatamente o senhor identifica o autoritarismo?
Machado: Para começar, a proposta sugere eliminar a possibilidade de o advogado apresentar agravos durante o período de produção de provas. Vou explicar: quando as partes querem anexar provas ao processo, digamos, um laudo pericial, devem pedir autorização ao juiz. Hoje, se o juiz de primeira instância negar esse pedido, o advogado poderá entrar, junto ao Tribunal de Justiça, com um instrumento que se chama “agravo”. Até que isso seja decidido, o processo para. O novo código acaba com a possibilidade do agravo.
Mas a ideia não é justamente impedir que advogados lancem mão de agravos apenas para emperrar o andamento dos processos?
Machado: Você tem razão, alguns fazem isso. Mas é um erro tentar se precaver contra esse tipo de comportamento desleal cerceando um direito do cidadão. Se o juiz não admite a produção de uma prova, o processo todo pode ficar viciado. Vamos ilustrar, para que fique claro: hoje, nos jogos de tênis, quando uma bola quica perto da linha e o juiz diz que foi fora, o jogador que se sentiu prejudicado pela decisão pode pedir o “desafio”, que nada mais é do que conferir na imagem digitalizada se a decisão foi acertada ou não. Isso tem de ser feito durante o jogo, não pode ficar para o fim da partida, já que um ponto, às vezes, define o resultado do jogo. É assim com o agravo na produção de provas. Se o sujeito não puder questionar essa decisão do juiz antes que ele dê a sentença, poderá perder o julgamento. Depois, não será possível corrigir o erro. Não adiantará recorrer ao tribunal, porque na segunda instância não se podem produzir provas. Ou seja, em nome da rapidez, estão roubando um direito do cidadão.
A proposta de aplicação imediata das sentenças em primeira instância também é um problema?
Machado: Sim. Hoje, enquanto um recurso está sendo julgado, a sentença não é executada. Trata-se de um princípio do nosso direito que tem como objetivo garantir que nenhuma ação seja julgada por um único homem porque os homens são falíveis. Por isso, todos têm direito a uma segunda opinião. No tribunal, três desembargadores, que são juízes mais experientes, vão reanalisar o caso. Só depois que eles confirmam a sentença ela é executada. É um procedimento que aumenta a segurança jurídica de toda a sociedade. Todos têm direito a buscar uma segunda opinião. No projeto de reforma, isso acaba. Quando o juiz de primeiro grau der sua decisão, ela será imediatamente aplicada. Numa disputa de herança, por exemplo, se o juiz decidiu a favor de um filho e, anos depois, a sentença é reformulada de forma a beneficiar outro filho, azar o dele, porque em muitos casos não será mais possível desfazer os efeitos práticos do engano.
Ou seja, o juiz de primeira instância terá uma concentração exagerada de poderes?
Machado: Exato. E não para por aí. Eles poderão, também, tomar decisões de ofício – ou seja, que não foram requeridas por nenhuma das partes. O juiz vai agir como parte ativa, e não como mediador. Isso é uma porta aberta para o ativismo judicial. Se a reforma do código for aprovada, cada juiz aplicará a lei a seu modo e ninguém poderá nem sequer recorrer das decisões a tempo de evitar um equívoco. Não vejo vantagem em ter um Judiciário mais rápido se ele é mais propenso a cometer injustiças.
Mas qual seria, então, a saída para aumentar a agilidade dos julgamentos sem pôr em risco os direitos do indivíduo?
Machado: O problema da lentidão do Judiciário não é a legislação. Ela é igual para todos, mas certos judiciários estaduais são muito mais ágeis do que outros. A razão disso está em melhor gestão, mais recursos, mais informatização.
Como o aumento de estrutura faria a Justiça andar mais rápido?
Machado: Os nossos juízes – em sua imensa maioria – são bem preparados. Eles julgam devagar porque estão sobrecarregados. Nós temos no Brasil 83 milhões de processos em tramitação. É uma quantidade enorme, extraordinária. A Justiça mais lenta é a de São Paulo, que concentra quase 25% dos casos – são 19,5 milhões de processos –, e não existe estrutura para fazer frente ao desafio. Faltam juízes, funcionários, computadores, cartuchos de impressora, quase tudo. Há juízes responsáveis por até 7000 processos. Eles têm de dar oitenta, às vezes até 100 sentenças por mês. Isso é loucura.
No serviço público, todos reclamam de falta de verba, não?
Machado: Eu não sou juiz nem tenho por que pedir mais dinheiro para o Judiciário, mas, em São Paulo, o problema é esse. O estado tem mais demandas judiciais, mais processos e, proporcionalmente, menos dinheiro – de forma que não é possível fazer frente às despesas de custeio. No ano 2000, havia em São Paulo 9 milhões de processos e 54000 funcionários na Justiça. Hoje, são 19,5 milhões de processos e 45000 funcionários. O número de processos dobrou e o de funcionários caiu 20%.
Isso explica toda a lentidão?
Machado: O Tribunal de Justiça perde oitenta funcionários por mês. Eles se aposentam e não são repostos, por economia. Em 2004, existiam 6000 oficiais de Justiça. Hoje, são 5000. Também não há verba para infraestrutura. Temos aprovada em lei a criação de 200 novas varas. Para tanto, seriam necessários 19 milhões de reais. Claro que isso desafogaria um pouco as varas existentes. Como não houve verba para contratar gente, comprar móveis e computadores, as novas varas ficaram apenas na promessa.
O Judiciário precisa aumentar de tamanho?
Machado: Sim, essa é uma diferença em relação aos outros poderes da República. No Executivo e no legislativo, você pode falar em redução, cortes e enxugamento. Mas com a Justiça é diferente. Quanto mais um país se desenvolve economicamente e quanto mais as pessoas têm acesso a informação e educação, mais elas vão demandar o Judiciário. É uma relação direta de causa e efeito. O Brasil está crescendo, e a quantidade de processos que chegam às varas também. Se não investirmos, o congestionamento só aumentará.
Só mais dinheiro resolveria a questão?
Machado: Claro que não, é preciso saber o que fazer com ele. A Justiça precisaria investir nos funcionários, capacitá-los e modernizar sua gestão. No Rio, isso já é feito. Aliás, como disse antes, a Justiça do Rio é mais rápida que a de São Paulo, mas as duas seguem o mesmo Código de Processo Civil. Fica claro que não é um problema de legislação. No Rio, julga-se uma apelação em menos de um ano. Em São Paulo, o prazo sobe para quatro, até cinco anos. Se o código é o mesmo, a razão da disparidade deve ser buscada em outras áreas. A Justiça carioca é muito mais bem administrada que a paulista. Recebe, proporcionalmente, mais recursos – e sabe o que fazer com eles. Se o problema é de gestão, é um absurdo alterar a legislação e suprimir direitos que protegem o cidadão na tentativa de aumentar a velocidade dos julgamentos.
Além dos pontos negativos, o senhor vê algum avanço no projeto de reforma do Código Civil?
Machado: Sim, há uma ideia excelente, que é estimular a conciliação. Funcionaria da seguinte forma: quando um juiz recebesse um processo, ele seria obrigado, como primeira providência, a marcar uma audiência de conciliação, para que as partes tentassem chegar a um acordo sem precisar de uma sentença. Isso funciona no mundo todo. Não faz parte da cultura brasileira, mas pode ser uma ótima novidade.
Quem seria o conciliador?
Machado: Pelo projeto, isso ficaria a cargo do próprio Poder Judiciário, o que para mim é um erro, já que iria sobrecarregar ainda mais a Justiça. Defendo a ideia de que isso seja entregue à iniciativa privada. As pessoas montariam câmaras de conciliação, que seriam empresas como outras quaisquer. Se elas conseguissem promover um acordo entre as partes, seriam remuneradas por isso e o processo terminaria aí mesmo. Seria uma saída mais eficaz para desafogar as varas que mudar as regras processuais.
Nesse caso, o risco de o conciliador favorecer uma das partes não é alto? Do que precisamos ter medo?
Machado: Na audiência de conciliação estariam presentes as duas partes, com seus advogados. E o trabalho seria tocado por profissionais selecionados e certificados pelo Conselho Nacional de Justiça. Se uma das partes não gostasse do resultado da conciliação, bastaria recusar o acordo. O juiz seria informado e tocaria o processo normalmente. Mas já seria um belo filtro de entrada, que reteria muitas demandas. Pouca gente sabe, mas temos cerca de 2500 câmaras de conciliação no Brasil. Acredito que haveria potencial para que fossem criadas até 20000. A Justiça ficaria aliviada.
Isso poderia justificar a aprovação da reforma?
Machado: Para implantar essa ideia, não é preciso um novo código. Essa alteração poderia ser incluída no código em vigor. No Brasil, temos a mania de querer reinventar a roda, mudar tudo o tempo todo. O Código de Processo Civil da Itália, por exemplo, é de 1942 – e funciona muito bem. O da Alemanha é de 1879. O da França, de 1804 – da época de Napoleão. Todos estão funcionando. Receberam diversas modificações ao longo do tempo, claro, mas estão de pé. O nosso código é muito benfeito e tem caráter democrático. Alterá-lo nos moldes que estão sendo colocados poderá apenas criar um tipo de ditadura que jamais vimos no Brasil, a ditadura do Judiciário. Não faz sentido.
Fonte: revista “Veja”
Todos são a favor de maior agilidade no judiciário! E com as propostas deste senhor os processos ficarão mais ágeis, graças a deus, em cinco minutos…
Tem plena razão o prof. Antônio da costa Machado. Como advogado há quase 40 anos, posso afirmar que a reforma, nos termos propostos, será um desastre. A concentração de poderes no juiz de primeiro grau, para quem bem conhece as justicas dos estados, produzira grande insegurança jurídica. Ate para os juízes monocraticos isso não será bom, pois pode atrair a hostilidade dos jurisdicionados, ao ficarem sem chances de reformar sentenças e decisões pelas vias recursais do agravo e da apelação. A idéia da conciliação previa por órgão privado afigura-se-me excelente.