A acentuada projeção institucional do egrégio Supremo Tribunal Federal (STF) na corrente quadra republicana faz levantar indagação jurídica da mais alta relevância e atualidade: poderá a Suprema Corte, sob o augusto argumento de proteção e efetividade constitucional, invadir livremente a análise de atos de natureza genuinamente política? O princípio da separação de poderes e a almejada harmonia sistêmica não acarretará limitações recíprocas, a exigir autocontenção e preservação de esferas de competência institucionais? Ou será a “guarda da Constituição” (artigo 102, CF) autorização de sindicabilidade, bastando, para tanto, ser o STF judicialmente provocado independentemente da natureza política do ato ou medida questionada?
Mais de Sebastião Ventura
Povo miserável, política bilionária
As perguntas acima expõem a tênue linha territorial que separa a vida política do mundo jurídico. Sem cortinas, a complexidade do problema posto não é de solução matemática, ou seja, as lógicas do poder navegam por mares revoltos, entre dias de paz e outros de agitação. Sobre o ponto, a sabedoria superior de Louis Brandeis bem pontuou que “a convenção de 1787 adotou a doutrina da separação de poderes não com o fito de promover eficiência, mas para evitar o exercício do poder arbitrário. O objetivo não é evitar atrito, mas garantir o povo contra a autocracia por meio do atrito inevitável resultante da distribuição dos poderes governamentais entre três departamentos”. Dessa forma, o tensionamento institucional entre os Poderes da República é uma condição natural do jogo democrático. Aliás, antes de perfeita, a democracia há de ser possível. E só há possibilidade com diálogo, divergências e entendimento.
No amanhecer da institucionalidade republicana brasileira, o grande Pedro Lessa, em lição clássica (1915), afirmou que “para se furtar a competência do poder judiciário, não basta que uma questão ofereça aspectos políticos, ou seja suscetível de efeitos políticos. É necessário que seja simplesmente, puramente, meramente política”; após indagar o que seriam questões exclusivamente políticas, veio a responder: “As que se resolvem com faculdades meramente políticas, por meio de poderes exclusivamente políticos, isto é, que não têm como termos correlativos direitos incarnados nas pessoas, singulares ou coletivas, sobre que tais poderes se exercem”; no entanto, amparado na doutrina de Rowe, o notável jurista mineiro asseverou que “a violação de garantias constitucionais, perpetradas à sombra de funções políticas não é imune à ação dos tribunais”.
A gradativa centralidade normativa da Constituição acarretou considerável relativização da teoria da insindicabilidade judicial das chamadas purely political questions. Já em precedente de 1951, capitaneado pelo eminente ministro Luiz Gallotti, o Pleno do STF consignou: “As medidas políticas são discricionárias apenas no sentido de que pertencem a discrição do Congresso ou do Governo os aspectos de sua conveniência ou oportunidade, a apreciação das circunstâncias que possam autorizá-las. Mas a discrição legislativa ou administrativa não pode exercitar-se fora dos limites constitucionais ou legais. O antigo critério jurisprudencial norte-americano (merely, purely, exclusively political questions) foi superado” (DJ 14.06.1951). Você leu 1 de 10 matérias a que tem direito no mês. Quer acesso ilimitado?
Embora aberta a excepcional porta de acesso à suprema jurisdição, cumpre assinalar que o mérito político sempre político será. Logo, não cabe ao Supremo avaliar a conveniência ou oportunidade do ato em si, mas apenas verificar se tal prerrogativa política foi exercida nos limites expressos na Constituição. E, se limites inexistirem, não caberá ao Supremo criar requisitos formais ou materiais que só o legislador constituinte assim poderia prever. Por exemplo, não cabe ao STF nomear ministros de Estado, pois trata-se de competência privativa do presidente da República (artigo 84, I, CF); todavia, se tal nomeação política recair em um brasileiro de 18 anos não estará observado o requisito etário do artigo 87/CF (“maiores de vinte e um anos”), legitimando a declaração de inconstitucionalidade da juvenil indicação.
Outro exemplo: suponha-se que a Câmara dos Deputados, no exercício de sua competência política de admitir a acusação de impeachment contra o presidente da República, delibera dar continuidade ao procedimento por voto majoritário de 51% dos seus integrantes; nesse caso, haveria ofensa frontal à regra do artigo 86 da Constituição, que exige voto de “dois terços da Câmara dos Deputados”, legitimando ação judicial do prejudicado contra a arbitrária maioria.
Como se vê, quando, no exercício de prerrogativas ou funções exclusivamente políticas (do Parlamento ou Executivo), restar configurada infração patente à cláusula constitucional, poderá o Supremo Tribunal invadir, excepcionalmente, a querela posta, recompondo o império da lei. Frisa-se, por oportuno: tal inconstitucionalidade haverá de ser objetiva, frontal, direta, categórica, inquestionável. Na conhecida expressão do eminente ministro Sepúlveda Pertence, a apreciação de temas políticas exige “inconstitucionalidade chapada”. Portanto, livre de subjetivismos hermenêuticos que, escorados em lances de talento retórico, acabam por tornar a lei em mero escravo de vontades passageiras. Sim, vontades que passam, que vão e vem, trazendo consigo o mal da insegurança jurídica.
Importante sublinhar ainda que, quando provocado a jurisdicionar sobre questões de interesse político direto ou indireto, cabe ao Supremo avaliar, em juízo constitucional prelibatório, se a ação judicial é passível ou não de conhecimento. Ilustrativamente, convém lembrar a Questão de Ordem na ADPF nº 1/STF, relatada pelo ministro Néri da Silveira: um veto executivo teve sua constitucionalidade judicialmente questionada quando ainda pendente juízo legislativo para manutenção ou derrubada do referido ato político; o eminente Relator fundamentou que “não poderá, nesse caso, o Poder Judiciário substituir ao Poder Legislativo, antecipando juízo formal sobre os motivos do veto, acerca de sua procedência ou erronia, ou reconhecer, desde logo, ato abusivo por parte do Executivo”, vindo, ao final, a não conhecer da pretensão processual; em complemento, da altura de seu saber invulgar, asseverou o ministro Moreira Alves: “a alegação de inconstitucionalidade de motivação de veto para verificação daquilo que a inicial chama de abuso do poder de vetar é questão que, a meu ver, é insusceptível de ser apreciada pelo Poder Judiciário, por se integrar numa daquelas questões políticas para as quais não há possibilidade de interferência do Poder Judiciário” (STF, Pleno, j. 02.02.2000).
Por tudo, a dinâmica do poder, com seus atritos inevitáveis, entre erros e acertos, entre virtudes e vícios, entre hegemonias transitórias e equilíbrios circunstanciais, eleva a democracia como palco de debates fundamentais perante olhos atentos de uma sociedade em redes de movimentos rápidos e inusitados, que não abre mão de sua liberdade, rejeitando toda forma de opressão política ou togada. Se, diante da complexidade da vida contemporânea, impossível separar a priori esferas de competência constitucionais tão imbricadas, certo é que o sentimento de injustiça é de automática percepção sensorial. E é esse sentimento de repugnância ao mal e ao injusto, venha de onde vier, que norteia caminhada civilizatória em favor de dias melhores. Eis o trajeto a seguir, embora tantas vezes acidentado.