O Boko Haram é um dos mais repugnantes grupos terroristas do mundo. Ele não representa os muçulmanos da Nigéria, cujas organizações o condenam, apontando sua natureza anti-islâmica. Seu líder original, Mohammed Yusuf, um fanático jihadista, denunciava a teoria da evolução e a esfericidade da Terra como abominações do pensamento ocidental. Contudo é um equívoco imaginar que o grupo não passa de uma milícia isolada de extremistas ou uma emanação da Al Qaeda. O Boko Haram é um fruto escatológico da crise de um sistema de poder organizado em torno de identidades étnicas oficiais.
A Nigéria é uma invenção britânica. Um ato da potência imperial unificou, em 1914, os territórios que compõem o país e abrangem cerca de 250 etnias. O sistema de “governo indireto” britânico apoiou-se nas elites cristianizadas dos iorubas e dos igbos, etnias majoritárias no oeste e no sudeste, marginalizando os muçulmanos do norte, em sua maioria Haussás-Fulanis. A independência, negociada com Londres, baseou-se numa Constituição Federal que dividia o país em Norte, Ocidente e Oriente, cristalizando o poder regional das três principais etnias. Logo depois, a elite Haussá-Fulani estabeleceu mecanismos de cotas étnicas no funcionalismo público da Nigéria Setentrional.
Um líder político do Norte admitiu que, para implantar as cotas, “nós tivemos que ensinar o povo a odiar os sulistas, a enxergá-los como pessoas que expropriavam seus direitos”. A guerra separatista dos igbos de Biafra, entre 1967 e 1970, assinalou o colapso do Estado nigeriano. Uma primeira reconstrução, refletida na Constituição de 1979, dividiu o país em 19 Estados. Uma segunda, expressa na Constituição de 1999, ampliou o número de Estados para 36. Procurava-se garantir a unidade nacional por meio de acordos abrangentes entre as elites étnicas regionais. Tais acordos conferiam aos governos estaduais a prerrogativa de criar cotas para os “habitantes nativos” no funcionalismo, no mercado de trabalho, nas universidades e até na esfera da posse da terra. A pedagogia do ódio étnico difundiu-se por todo o país.
São 36 Estados, mas 250 etnias. As etnias minoritárias, além de todos os migrantes, estão excluídos das reservas de cotas, pois não ostentam o rótulo de “habitantes nativos”. Na Nigéria Setentrional, região mais pobre, e especialmente às margens do lago Chade, que perdeu 90% de seu volume de água desde 1963, a miséria, o desespero e a privação de direitos nutrem o extremismo político-religioso. Um precedente do Boko Haram encontra-se na sangrenta revolta liderada em 1979 por Mohammed Marwa (o Maitatsine, “aquele que condena”), um autodenominado profeta cuja base de apoio estava entre as etnias minoritárias da região.
Yusuf, o fundador do Boko Haram, era um pregador puritano local que rompeu com a seção nigeriana da Irmandade Muçulmana e se tornou popular entre os jovens pobres da etnia Kanuri. Seu assassinato, sob custódia policial, em 2009, abriu caminho para a ascensão de lideranças ainda mais radicais, que conectaram o grupo a organizações jihadistas do Mali, do Níger e do Chade. Segundo o presidente nigeriano Goodluck Jonathan, o Boko Haram infiltrou-se nas Forças Armadas, nos serviços de inteligência e no Parlamento da Nigéria, aproveitando-se de extensas redes de corrupção e clientelismo.
A bandeira do Boko Haram é a criação de um Estado Islâmico na Nigéria Setentrional. Diante da discriminação étnica institucional, a miragem de uma igualdade baseada na fé islâmica funciona como poderoso ímã político. Depois da onda de repulsa provocada pelo asqueroso sequestro de meninas, abre-se a hipótese de eliminação militar do grupo terrorista. Mas o fanatismo jihadista não é um raio no céu claro. Ele não desaparecerá enquanto a Nigéria continuar rejeitando o princípio da igualdade perante a lei.
Fonte: Folha de São Paulo, 11/5/2014
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