Tanto Donald Trump quanto Angela Merkel têm sofrido críticas severas pelo modo como enfrentam a questão migratória, problema cuja gravidade só aumenta, segundo o relatório divulgado ontem pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).
A quantidade de pessoas deslocadas cresceu mais de 50% nos últimos dez anos, de 42,7 milhões (2007) para 68,5 milhões (2017). Só no ano passado, houve aumento de quase 3 milhões. Nos últimos cinco anos, o aumento anual médio foi de 9,5%, de acordo com o Acnur.
Nos Estados Unidos, por sugestão do assessor de Trump Stephen Miller, a polícia passou a adotar tolerância zero com famílias detidas ao tentar cruzar a fronteira. Com base num dispositivo legal antes desprezado, há seis semanas os pais vêm sendo separados dos filhos e enviados a centros de dentenção.
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A medida já atingiu algo como 2.000 famílias. Fotos, vídeos e áudios de crianças chorando, mantidas em condições precárias (até em gaiolas), suplicando pelos pais que buscam asilo despertam revolta no país e no mundo todo. Até a primeira-dama, Melania Trump, se disse chocada.
Trump põe a culpa na lei e na resistência dos democratas a aprovar, no ano passado, a reforma migratória que incluía a construção do célebre muro na fronteira com o México. A oposição o acusa de usar as crianças como forma de chantagem para obter a aprovação de sua inútil promessa de campanha, transformada em fetiche nas negociações.
Na Alemanha, a crise resulta do ultimato dado pelo líder da União Social-Cristã (CSU), Horst Seehofer, para que Merkel feche as fronteiras de seu estado, a Baviera (ao sul do país), à entrada daqueles que buscam asilo.
A CSU, agremiação mais forte da Baviera, mantém uma aliança histórica com o partido de Merkel, a conservadora União Democrata-Cristã (CDU). Nas negociações para formar a coalizão no poder, que se estenderam por seis meses, a política migratória foi um dos eixos da discórdia.
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Com a votação historicamente mais baixa em sua história (38% na Baviera), ameaçada pelo crescimento dos populistas do Alternativa para a Alemanha (AfD), a CSU reivindicava políticas mais duras, com restrição ou, no mínimo, estabelecimento de cotas rígidas para migração. O Partido Social Democrata (SPD) e Merkel eram mais permissivos.
No final, as cotas foram criadas. A onda migratória que assustou o país em 2015, quando a Alemanha recebeu 890 mil estrangeiros, arrefeceu. Em 2016, para 280 mil. Em 2017, para 187 mil, abaixo do patamar de 200 mil estipulado do acordo da coalizão. Mesmo assim, a população de refugiados cresceu 45%, para 970 mil, com a concessão de asilo aos que já estavam no país.
A persistência da crise ameaça o desempenho da CSU nas eleições regionais previstas para o segundo semestre. Nacionalistas alemães aplaudem as políticas migratórias do novo governo italiano, onde a influência da Liga Norte se faz sentir. Na semana passada, a Itália recusou-se a receber o navio Aquarius, com refugiados africanos, depois obrigado a aportar na Espanha.
O novo premiê, Giuseppe Conte, exigiu uma nova política para migração na União Europeia (UE) em reunião com o presidente da França, Emmanuel Macron. Pela política atual, o país de entrada (como a Itália) arca com o custo da absorção e registro, ainda que as fronteiras abertas permitam ao migrante tentar asilo na França ou Alemanha.
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A campanha contra a imigração na Alemanha levanta a bandeira da alta nos índices de criminalidade e no terrorismo. Embora reais, tais preocupações não refletem a realidade da maior parte dos que buscam refúgio. Quase todos deixaram seus países em virtude de guerras, condições humanitárias precárias ou em busca de uma vida melhor.
De acordo com o Acnur, 16,2 milhão de pessoas foram deslocadas de suas casas no ano passado. Dessas, 4,4 milhões foram atrás de proteção no exterior; 11,8 milhão tentaram se restabelecer no próprio território.
Os países mais afetados pela crise de refugiados são Síria, Colômbia, Congo e Myanmar (neste último, 666 mil pertencentes à minoria rohyngia se viram obrigados a fugir para Bangladesh num período de 100 dias depois de agosto). Pela primeira vez, o Afeganistão superou a Síria na quantidade de deslocados buscando asilo.
Em termos absolutos, os países com maior população de refugiados são Turquia (3,5 milhões), Paquistão (1,4 milhão) e Uganda (1,4 milhão). Em termos relativos, Líbano (164 por 100 mil habitantes), Jordânia (71) e Turquia (43). Nos últimos três anos, os países que mais concederam asilo foram Alemanha (1,4 milhão) e Estados Unidos (766 mil).
A crise humanitária provocada pela ditadura bolivariana de Nicolas Maduro levou à fuga de 500 mil venezuelanos, quase 149 mil para o Brasil – onde apenas 10.264 foram reconhecidos como refugiados, e outros 85.746 aguardavam uma definição das autoridades.
Na comparação, a proporção de refugiados na população brasileira é ínfima. Mas poucos países estão imunes ao avanço da crise migratória. Quem souber encará-la com menos populismo e mais serenidade perceberá a oportunidade que migrantes representam à economia e à cultura de um país. Que o diga a própria Alemanha, cuja seleção disputa a Copa do Mundo com craques como Boateng, Khedira, Gomez e Özil.
Fonte: “G1”, 19/06/2018