No dia em que vai votar o projeto de lei que reajusta o salário dos serventuários do Tribunal de Justiça, a Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) pode beneficiar mais uma categoria: foi incluída na pauta de hoje a proposta de um aumento de 5% para os funcionários do Ministério Público. Especialistas, no entanto, dizem que os reajustes podem ferir os princípios da moralidade e da isonomia por beneficiar apenas duas categorias, que sequer foram as mais atingidas durante a crise.
— Esses reajustes violam o Regime de Recuperação Fiscal. Seria um descumprimento que pode levar à rescisão do acordo. Eles traduzem também uma injustiça. Se houvesse uma reposição salarial, ela deveria ser estendida a todos os servidores. Em um momento no qual as contas do governo foram rejeitadas (pelo Tribunal de Contas do Estado) por falta de aplicação na Saúde, me parece que essa decisão é temerária, injusta e viola os princípios da moralidade, da impessoalidade e da eficiência da administração pública — analisa Manoel Peixinho, professor de Direito Administrativo da PUC-Rio.
Leia mais:
José E. Faria: Políticos e juízes, entre o destino e a tragédia
Sebastião Ventura: O pós-ideológico
José Eli da Veiga: Venenosa ganância
A recomposição salarial não vale para promotores e procuradores. Se aprovada, a lei deve atingir 3.400 servidores do órgão. Assim como aconteceu com o Judiciário, que também reivindica 5%, o texto do MP foi enviado para o Legislativo em 2015 e só foi desengavetado agora, às vésperas do início da campanha eleitoral.
O impacto do reajuste no caixa do governo, segundo cálculos da época em que o projeto foi apresentado, seria de R$ 16 milhões ao ano. Desde 2014, os servidores do MP não recebem aumento. Mas, no auge da crise, eles e os funcionários do Tribunal de Justiça não sofreram como os atrasos de pagamento, como aconteceu com a maioria dos servidores. Apesar de estar mantendo os salários em dia, o governo se encontra longe de uma situação financeira confortável: registrou uma dívida acumulada (restos a pagar) de R$ 14,9 bilhões no fim do primeiro quadrimestre deste ano e enfrenta as medidas de arrocho previstas no Regime de Recuperação Fiscal (RRF), no qual o Rio ingressou para receber ajuda da União.
A possível concessão de um reajuste ao Poder Judiciário provocou, no início da semana, a reação do Ministério da Fazenda: o órgão afirmou que a medida fere o RRF. A maioria dos deputados, entretanto, defende que o projeto é legal, pois se trata de reposição salarial anual, dispositivo previsto na Constituição Federal e uma das exceções listadas num dos artigos do plano de socorro da União. O governador Luiz Fernando Pezão se manifestou contra o aumento para o tribunal. Sobre o projeto do MP, ele informou que vai aguardar a votação do texto.
+ José Nêumanne: STF, um monstro de 11 cabeças e 2 faces
SINDICALISTA: PERDA CHEGA A 25%
Para Flávio Sueth Nunes, presidente da Associação dos Servidores do Ministério Público do Estado do Rio (Assemperj) e integrante do Movimento Unificado dos Servidores Públicos do Estado (Muspe), a concessão do aumento não fere o acordo federal porque uma das exceções previstas no texto da lei é o pagamento de recomposição salarial:
— A gente entende que isso está até defasado, pois já temos 25% de perda salarial desde 2015. Todo trabalhador brasileiro tem direito à recomposição — defende. — O acordo federal não impede recomposição. Essa é uma narrativa que tem sido construída por setores dos governos federal e estadual e não corresponde à realidade.
Flávio Sueth Nunes diz não ver privilégios na pressão dos servidores do MP:
— Nosso projeto, na verdade, fortalece a luta de todos os servidores.
O professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio Ricardo Ismael acredita que esses dois projetos podem incitar movimentos de outras categorias:
— À medida que você é seletivo, atendendo a pleitos de duas corporações, pode ocorrer uma reação dos demais servidores. Todos, de uma forma ou de outra, vão querer ter uma atenção do estado. E as finanças públicas ainda estão precárias, sem qualquer gordura para queimar, embora seja uma demanda justa dos servidores.
No MP, os vencimentos básicos dos funcionários — exceto promotores e procuradores — variam de R$ 2.690,69 (técnicos) a R$ 16.729,47 (analistas). Na lista dos salários brutos de abril deste ano, 227 servidores receberam de R$ 15 mil a R$ 19 mil, e 35, acima desse patamar. Cerca de 1.200 ganharam menos de R$ 4 mil.
De acordo com o presidente da Alerj, André Ceciliano (PT), foram representantes do MP que pediram para o projeto ser votado:
— Se o próprio MP pede para colocar na pauta, eles sabem que têm que estar adequados às regras da Lei de Responsabilidade Fiscal. Claro que fazer uma recomposição salarial no meio de uma crise é sempre um risco, mas a Segurança, por exemplo, recebeu um aumento significativo em 2014, que foi escalonado para os anos seguintes.
Procurado, o Ministério Público não se pronunciou sobre o projeto.
+ Monica de Bolle: Rebelde sem causa
MESMO COM A CRISE, MAIS GASTOS SÃO AUTORIZADOS
Apesar das dificuldades do estado para fechar suas contas, várias iniciativas tomadas pelo governo têm colaborado para aumentar as despesas. Nem mesmo o fato de o Rio ter ingressado em setembro do ano passado no restrito Regime de Recuperação Fiscal, para receber ajuda da União, tem contido os gastos. No início do mês, por exemplo, o governador Luiz Fernando Pezão sancionou uma lei que reduziu de 16% para 12% a alíquota de ICMs cobrada sobre o diesel.
A medida foi proposta como parte de um acordo regional relacionado à greve dos caminhoneiros, que causou desabastecimento no país. Ao justificar a decisão, Pezão negou que haverá perda de receita. Ele argumentou, na época, que, como a alíquota praticada no Rio era maior que a adotada em estados vizinhos, os caminhoneiros evitavam abastecer em postos fluminenses. Com isso, ele acredita que a equiparação pode até melhorar a arrecadação de ICMS. O projeto já foi aprovado pela Alerj.
Em maio, outra medida que teve o aval dos deputados autorizou o Executivo a contrair um empréstimo de R$ 3,05 bilhões, para pagar dívidas com fornecedores. No fim de abril, também foi criado um novo plano de cargos e salários para servidores da Saúde. De acordo com a proposta inicial, eles receberão os reajustes a partir de 2023, após o fim do Regime de Recuperação Fiscal. Os deputados, porém, aprovaram a emenda deixando em aberta a possibilidade de serem concedidos reajustes graduais desde que aprovados pelo Conselho de Supervisão do Regime de Recuperação Fiscal. Pezão vetou o plano, mas a Alerj derrubou a decisão.
Enquanto isso, as medidas de austeridade não avançam. Nos primeiros seis meses do Regime de Recuperação Fiscal, o estado só conseguiu arrecadar metade dos R$ 10,9 bilhões previstos com ações para aumentar receitas e diminuir despesas.
Fonte: “O Globo”