Outra pauta que vem ganhando popularidade, além da PEC da Direta (que, mesmo se passar, não deve se aplicar a este ciclo), é a do recall presidencial (ou revogação de mandato). A PEC do recall foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado e agora segue para plenária. Em princípio, a ideia não é ruim. Na prática, contudo, seja quais forem os detalhes da implementação, seria bem desastrosa.
A ideia é em princípio boa porque, como bem sabemos, a maioria pode errar; e errar feio. Se um presidente se mostra desastroso mas, diferentemente de Dilma, não tiver nenhum crime para receber o impeachment, seria possível tirar o presidente. A população é soberana. O povo dá, o povo tira. Quem pode ser contra aumentar o poder de decisão do povo, dando a ele mais chances de decidir o futuro de seu país?
Exceto que “o povo” não decide nem quer nada. São sempre maiorias; maiorias fluidas, produtos de articulações políticas, mobilizações da opinião pública e sentimentos passageiros. Mude a data da eleição em um mês, e um resultado completamente diferente se desenha. Se o pleito de 2014 tivesse sido um mês antes, Marina vencia. Se o segundo turno fosse duas semanas depois, era do Aécio.
A eleição popular direta é boa por dois motivos: o primeiro é que ela mantém o poder em alguma medida responsivo à opinião pública. Se o governante ou seu partido forem muito impopulares, eles cairão no próximo ciclo, sem necessidade de guerra civil. O segundo é que, finda a eleição, ela acabou: podemos seguir adiante sem ficar eternamente brigando para saber quem deve presidir o país: o presidente já foi eleito. Só daqui a quatro anos seremos novamente tragados pela guerra eleitoral.
Com o recall, não. A eleição jamais terminará. No dia seguinte em que elegemos um novo presidente, os partidos derrotados já estarão investindo no abaixo-assinado necessário para convocar eleição de recall. Pela regra da versão que vai à plenária, serão necessárias as assinaturas de 10% do eleitorado. Com alguns milhões na mão, é plenamente factível (lembrando que certamente mais de 10% terão votado contra o presidente vencedor e serão, portanto, assinantes potenciais do abaixo-assinado). E sabemos como alguns milhões não são nada perto do dinheiro que corre para determinar os resultados da política.
Ao mesmo tempo, a oposição estará se articulando constantemente no Congresso para ter os votos necessários na Câmara. A derrubada do presidente, sem a necessidade de burocracias como investigação e evidência de crimes, se tornará uma pauta permanente da política nacional.
Desde 2015, não vivemos um mês sequer em que a derrubada do presidente em exercício não fosse um tema central da discussão pública. Havia bons motivos: as pedaladas de Dilma (e agora, sabemos, também a corrupção em larga escala), os possíveis esquemas de Temer. Mesmo assim, as energias da sociedade estão sugadas; não se fala em outra coisa e o país não avança. Torço para que depois do pleito de 2018 voltemos ao que deveria ser a normalidade: um presidente eleito e sobre cuja continuidade no cargo não ocorram disputas sérias a todo momento. Se a lei do recall passar, adeus sonho de estabilidade: colocaremos uma mira permanente na cadeira presidencial, esperando apenas o clima das ruas e do Congresso azedar para atirar.
A consequência natural seria, obviamente, a produção constante e ainda mais intensa de pautas para azedar a opinião pública e, por consequência, o Congresso. Bem ou mal, as passeatas contra Dilma pediam o impeachment por causa de seus crimes; elas pressionaram o Congresso, mas apenas porque havia algo que pesava contra a presidente que não era a própria passeata. Agora as ruas se tornarão árbitro e carrasco. A campanha eleitoral será perpétua.
O povo não é uma entidade sábia e dotada de vontade. Maiorias se coagulam e se perdem ao sabor do momento. Ter a opinião popular como pedra de toque de tempos em tempos faz todo o sentido. Deixar o governo ao sabor constante da opinião popular é, na melhor das hipóteses, deixar o navio à deriva em alto-mar. Na pior, nas mãos de um timoneiro populista com a pior das intenções.
Tirar um presidente desastroso é bom. Mas a ferramenta para tirar um presidente desastroso seria utilizável, por definição, para tirar qualquer presidente. E seria, portanto, mais um fator de desestabilização constante, algo de que o Brasil certamente não carece. Fiquemos sem o recall; eleição a cada quatro anos está muito bom. E que isso nos faça usar nossas esparsas oportunidades de voto da melhor maneira possível.
Fonte: “Exame”, 22/06/2017.
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