“A Índia é um país um tanto peculiar. Lá, uma casta de alta linhagem e pouco numerosa está totalmente convencida de que é superior aos demais conterrâneos. E os demais conterrâneos, divididos em diversas outras castas, estão totalmente convencidos de que são inferiores. Curiosamente, todos vivem em relativa paz.” Escutei essa frase no ano de 2001, ainda na faculdade de Economia, em uma aula da disciplina Desenvolvimento Econômico. O professor acabava de voltar de um congresso na Índia e, com certo sarcasmo, ironia e exagero, respondia às perguntas dos curiosos alunos, já que naquele ano a Índia havia ganhado certa notoriedade ao ser criado o termo BRIC (o “S” somente foi incluído anos depois para designar a África do Sul) e passava então a fazer parte do vocabulário do mundo ocidental e dos planos estratégicos ambiciosos das multinacionais.
O motivo da “indignação” do professor com aqueles comentários era o fato de que, como um tecido social tão desigual podia conservar uma tendência à perpetuação sem que o extrato “explorado” se revoltasse contra o extrato “explorador” na tentativa de alterar o status quo. Essa revolta poderia tomar a forma radical de uma guerra civil ou mesmo um caminho mais moderado por meio do processo democrático do voto. Mas não. Havia uma certa tendência à estabilidade, uma certa tendência à aceitação de uma condição social desfavorável, cruel e extremamente desigual.
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Pois bem, mas será que esse mesmo conformismo não afeta o povo brasileiro? Será que não somos tão tolerantes quanto os indianos? Será que não aceitamos que certas “castas” da nossa sociedade tenham certos privilégios e que sejam tratadas como especiais assim como Brâmanes, comparados a Deuses? O fato é que vivemos numa condição social na qual aceitamos pacificamente um sistema onde a grande maioria da população é tratada pelo Estado de maneira inferior ao tratamento recebido por aqueles que detêm o poder. Exemplos não faltam.
No Poder Judiciário, criamos e convivemos desde 1979 com o absurdo do auxílio-moradia, instituído pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) e que hoje compõe o contracheque de 70% dos magistrados no país, inclusive daqueles que têm casa própria na cidade na qual trabalham. Tal auxílio, que hoje é da ordem de R$ 4.377,73 (e ainda é livre de Imposto de Renda), custa milhões de reais anualmente ao orçamento público e privilegia uma classe que muitas vezes já tem salários acima do teto constitucional para o funcionalismo público. Isoladamente, o puro auxílio-moradia é maior do que a renda total de uma família de classe D (que recebe entre R$ 1.874,01 a R$ 3.748,00) e maior do que a renda total de muitas famílias de classe C (que recebem entre R$ 3.748,01 a R$ 9.370,00). É uma das “jabuticabas” que criamos, sem qualquer justificativa razoável, e que permanece vigente, sem um fim definitivo à vista.
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No Poder Legislativo, deputados e senadores podem se aposentar com direito a um benefício de até R$ 33.763, o que representa seis vezes mais do que o teto do INSS e com um período de contribuição muito distante daquele exigido da grande maioria dos trabalhadores brasileiros. Esse é outro conjunto de privilégios que precisa ser duramente atacado na tão desejada e necessária Reforma da Previdência, que na forma como está desenhada hoje nada mais é do que um sistema redistributivo ao avesso, onde os mais pobres contribuem para o pagamento dos gastos previdenciários dos mais ricos. O nosso sistema é tão perverso a ponto de destinar 41% do orçamento previdenciário para o grupo dos 20% de maior renda, enquanto somente 3% desse orçamento é destinado ao grupo dos 20% mais pobres. Enfim, o Estado é o maior promotor da desigualdade no Brasil e nós brasileiros toleramos isso, como se fosse algo normal e justificável.
No Poder Executivo, os salários dos funcionários públicos tiveram alta real de 49,4% no período de 1999-2017, enquanto a média dos salários dos empregados na iniciativa privada subiu apenas 14% no mesmo período, já descontada a inflação, segundo levantamento da Consultoria IDados divulgado em Dezembro/2018 com base nas informações do Ministério do Trabalho e Emprego por meio da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). Essa diferença no crescimento dos salários reais é outra anomalia brasileira que evidencia como os grupos melhor representados no poder manipulam o sistema de maneira a preservar seus privilégios às custas de uma grande massa de mal representados.
Nunca atingiremos melhores índices de desigualdade se não tratarmos tais anomalias. O estado tem a obrigação de preservar os interesses de todos os cidadãos e não somente daqueles que nele operam e que nele influenciam. A falta de responsabilidade com o dinheiro público no Brasil está comprometendo nosso presente e o futuro das gerações que virão. Nós, no exercício da nossa cidadania, temos que não somente estar incomodados com tamanhas injustiças, mas temos de transformar essa insatisfação em ação, demandando que nossos representantes legislem sempre com base no princípio de que todos somos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, assim como prevê nossa Constituição Federal.