A ida de Bolsonaro a Davos é parte da aposta maior de seu governo: reformas e retomada da economia. A reforma da Previdência, por exemplo, não será tão consensual como Paulo Guedes afirmou. No entanto, tem chance de ser realizada.
Concordo com a tese geral de que um passo correto na economia fortalecerá seu governo. Discordo, entretanto, de quem acha que a economia neutraliza todos os outros problemas.
Não tem sido assim. No passado discutia com simpatizantes do PT o mesmo tema. Argumentavam que o importante era crescimento e renda e a corrupção seria apenas uma nota de pé de página na História do período. Teoricamente, acho que as dimensões econômica e política se interpenetram e, em certos momentos, uma delas pode ser a determinante.
O período de democratização revelou para mim que existe uma grande demanda de valores na vida pública. Na primeira eleição direta, Collor era o caçador de marajás; Lula, o que traria a ética para a política. Na verdade, era uma demanda já na eleição do período anterior, em que Jânio venceu esgrimindo uma vassoura.
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O governo Bolsonaro surge com uma demanda maior, potencializada pelas redes sociais e diante de um País bastante severo e conhecedor das táticas evasivas dos políticos. Por isso vejo com a apreensão o episódio envolvendo o senador Flávio Bolsonaro. Os elementos que existem ainda não nos permitem concluir sobre o conteúdo. Mas é possível ter uma opinião sobre como as pessoas reagem quando estão sob suspeita – o comportamento acaba revelando mais do que a própria denúncia.
Quando Flávio Bolsonaro pediu ao Supremo que suspendesse as investigações, usando o foro privilegiado, alguns analistas concluíram que tinha tomado um elevador para o inferno. No primeiro andar já encontrou uma fogueira. Durante a campanha, Jair Bolsonaro, ao lado de Flávio, condenou o foro privilegiado.
Novas revelações – é sempre assim – surgiram e as explicações foram ficando mais difíceis e complicadas.
Surge um novo elemento com a prisão do Escritório do Crime, uma organização criminosa. Nova fogueira pelo caminho. Um dos milicianos teve a mãe e a mulher empregadas no gabinete de Flávio, então deputado estadual. Flávio disse que a responsabilidade da contratação era de Fabrício Queiroz, o motorista que já o enredara nas transações bancárias, levantadas pelo Coaf. Acontece que é muito difícil um deputado não conhecer perfeitamente seus assessores.
Além do mais, Flávio tem uma visão de que as milícias são um mal menor, porque expulsam os traficantes. E achava razoável que fossem financiadas pela comunidade.
São posições muito delicadas porque se aproximam da apologia do crime, na medida em que ignoram que as milícias vendem gás, controlam parte do mercado imobiliário, do transporte alternativo e em certos lugares elas próprias até assumem o tráfico de drogas.
Bolsonaro elegeu-se repetindo a frase “conhecereis a verdade e ela vos libertará”. Ele se vê agora diante do desafio de João: divulgar a verdade e esperar que ela o liberte.
É apenas uma suposição que o caso de Flávio não atinja o governo. Qualquer observador pode constatar nas redes sociais o desgaste entre os próprios apoiadores do governo. Foi uma campanha feita com explicações diretas pela rede. Os seguidores estão perplexos, pois as explicações agora são em entrevistas escolhidas.
Como o governo Bolsonaro tem bastante popularidade, as perdas talvez sejam subestimadas. Mas em política sabemos que não é bom sangrar.
Na verdade, quem acompanha os debates na direita observa que já existem conflitos abertos, alguns preocupantes. A viagem de um grupo de parlamentares do PSL à China produziu um grande debate interno. Isso tudo se passa na internet, mas a sensação é de que foi uma viagem sem briefing do Itamaraty, sem visão dos limites.
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Segundo Olavo de Carvalho, os deputados foram conhecer um sistema de monitoramento facial da Huawei, empresa chinesa acusada de espionagem e que é um dos temas da guerra comercial EUA x China. De modo geral, somos muito sensíveis a sistemas de monitoramentos. Lembro-me do Sivam, fizemos muito barulho em torno dos equipamentos que iriam monitorar a Amazônia. Talvez o barulho tenha sido excessivo, o problema maior é usar todo o potencial do sistema. Isso apenas para dizer que não é uma tarefa de deputados recém-eleitos discutir essa questão na China. Envolve outras dimensões de governo.
O mais desolador é o nível do debate entre eles na redes sociais. Revela, para mim, uma das grandes distorções do presidencialismo no Brasil. Um presidente popular arrasta consigo dezenas de parlamentares. Na verdade, muitos deles são bombas de efeito retardado.
É possível que com eles, ou apesar deles, as primeiras batalhas da economia sejam vencidas. Mas de novo coloco a questão política e cultural: a direita tem consistência para dirigir um país tão diverso?
Outra dimensão preocupante é a questão ambiental. É uma ilusão ver isso com lentes ideológicas. Não é possível que considerem o tema uma trama marxista. O próprio organizador do Fórum de Davos, Klaus Schwab, questionou Bolsonaro sobre isso. Não parecia um marxista.
Antes de partir para Davos, o governo designou para o Serviço Florestal um deputado que é autor de uma lei autorizando a caça de animais silvestres. Pode argumentar que ela existe nos EUA. Eles têm um sistema de controle maior e, além do mais, por que se inspirar nos EUA nesse caso? Não há espaço para essa lei no Brasil. Nem para os setores que querem avançar sobre a floresta para criar gado, liberando carbono e toda a flatulência.
Economia à parte, os passos do governo nas dimensões político-culturais me deixam em dúvida se estou vendo estreia ou versão de um antigo filme.
Fonte: “Estadão”, 25/01/2019