Não se pode confiar nem na recessão, pelo menos naquela made in Brazil. Recessões decentes são em geral acompanhadas de inflação em queda e contas externas em recuperação. O caso brasileiro é especial. Os preços ao consumidor sobem 10%, enquanto o desemprego atinge 9% da força de trabalho, a renda real das famílias diminui, o crédito se torna mais difícil e o produto interno bruto (PIB) encolhe 3,5%, segundo as estimativas correntes. Só uma parte do script convencional parece estar sendo cumprida. O superávit comercial de US$ 14,21 bilhões acumulado no ano, até a primeira semana de dezembro, é o sinal mais vistoso da melhora do balanço de pagamentos.
No ano passado, no mesmo período, o saldo havia sido um déficit de US$ 3,95 bilhões, segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Pelo menos as contas externas parecem refletir um efeito benigno da recessão. O mercado projeta para este ano um superávit de US$ 15 bilhões na conta de mercadorias. A última estimativa do Banco Central (BC), baseada em critério um pouco diferente, é de um saldo positivo de US$ 12 bilhões, com enorme recuperação, portanto, em relação ao resultado de 2014, quando o déficit chegou a US$ 6,53 bilhões.
Ainda pelas contas do BC, o déficit em conta corrente passará de US$ 104,08 bilhões no ano passado para um buraco muito menor, estimado em US$ 65 bilhões. A melhora, se confirmada, resultará tanto do superávit na conta de mercadorias quanto da redução do déficit em serviços e rendas. A tudo isso se acrescenta uma boa notícia: o investimento direto, o tipo mais seguro e mais produtivo de financiamento externo, será suficiente, de novo, para cobrir o rombo das transações correntes. Mas esse ajuste das contas externas será, de fato, um dado tão positivo?
Nem tanto. Recessões tendem a reduzir a demanda de bens importados e os gastos no exterior, até porque são frequentemente acompanhadas de uma desvalorização da moeda nacional. Mas também resultam, com frequência, em aumento de exportações. Diante da retração do mercado interno, empresários tendem a buscar negócios no exterior e nisso são ajudados, muitas vezes, pelo câmbio. A desvalorização de sua moeda barateia os produtos nacionais no mercado externo e encarece os importados. No caso brasileiro, só uma parte do roteiro se confirmou.
De janeiro até a primeira semana de dezembro, o valor exportado, US$ 177,39 bilhões, foi 14,9% menor que o de um ano antes. A conta só ficou superavitária porque o gasto com a importação de mercadorias diminuiu muito mais. A despesa com a importação, US$ 163,18 bilhões, foi 27,3% menor que a de igual período de 2014, pela média dos dias úteis. Como é normal, a recessão derrubou a procura de produtos estrangeiros, mas a exportação também diminuiu, embora em menor proporção.
A redução do valor exportado é explicável por dois fatores. O primeiro é a queda dos preços internacionais dos produtos básicos, em parte associada à diminuição do crescimento da economia chinesa. Apesar disso, as vendas de commodities ainda sustentaram o saldo comercial. O segundo fator é o mais preocupante. A indústria brasileira, mesmo em dificuldades no mercado interno, foi incapaz, de modo geral, de encontrar uma compensação nas vendas ao exterior.
Com algumas exceções, os produtores brasileiros de manufaturados vêm perdendo competitividade há anos. Os custos cresceram, a infraestrutura continua muito deficiente e a produtividade recuou. A alta do dólar pode ter trazido algum alento aos exportadores, mas insuficiente para compensar os entraves à competição. Industriais se queixaram, durante anos, do câmbio valorizado e, portanto, prejudicial a seus negócios. Mas pouco se fez, em termos políticos e empresariais, para cuidar de fatores muito mais importantes, a longo prazo, como a tributação irracional, a baixa qualidade da mão de obra, a burocracia excessiva, a insegurança jurídica e o acesso limitado a mercados externos e às cadeias internacionais de valor.
Este ponto, especialmente importante, remete à diplomacia comercial terceiro-mundista em vigor desde 2003 e ao revigoramento de uma política industrial abandonada, há muito, nas economias mais dinâmicas do mundo emergente. Muitos empresários se acomodaram facilmente, é claro, num ambiente marcado pelo protecionismo e pela pouca ambição quanto a acordos internacionais de comércio.
A incapacidade de aproveitar a depreciação cambial para competir no mercado externo é explicável, em parte, pela acomodação, durante tanto tempo, num ambiente de confortável mediocridade. Quem se aproveitou das políticas de conteúdo nacional teve ainda menos motivação para se mexer e investir em produtividade e inovação.
Recessões, em outros países, são com frequência o custo imediato de políticas de ajuste das contas fiscais e do balanço de pagamentos. Isso já ocorreu também no Brasil. Desta vez, a promessa de arrumação fiscal só apareceu quando a economia já estava em recessão e a base tributária, por causa da contração dos negócios, era insuficiente para alimentar um Tesouro depredado. Não se produz de um dia para outro um desastre como o brasileiro: uma combinação especial de contas públicas estropiadas, economia retraída, inflação muito alta e ajuste externo conseguido só à custa da redução da corrente de comércio. No País, até a recessão é desarranjada e de qualidade inferior.
A retração dos negócios deve continuar em 2016, os juros ainda podem subir e o compromisso de austeridade fiscal continua incerto. Outras agências podem seguir a Standard & Poor’s e rebaixar o crédito do Brasil ao nível especulativo. Mas a prioridade da presidente é evitar o impeachment – possível punição de apenas alguns dos desmandos fiscais. Com ela ou sem ela, o conserto será demorado e doloroso.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 13/12/2015.
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