“Você pagou com traição, a quem sempre lhe deu a mão.” (Neoci Dias, Dida e Jorge Aragão)
Escrevo em jornal toda semana. De onde saem os assuntos e o tom da escrita, perguntam uns poucos amigos, colegas e conhecidos. Ainda outro dia, uma pessoa que graças ao que tem não precisa descobrir que o sapo não pula por boniteza, mas por precisão, confessou-me, com ares dramáticos, a sua incapacidade de replicar minha experiência jornalística. Era o modo brasileiro de admirar e elogiar, dizendo: “A esse ponto eu não chego.”
O fato é que, de sete em sete dias, eu – entre aulas, pesquisas, leituras e exercícios para aguentar a dureza do mundo – escrevo uma coluna e sou sempre instigado a penar no papel do jornal e da imprensa numa sociedade democrática e liberal. Num sistema parcialmente dinamizado pela competição e pelo mercado que salientam escolhas e desejos individuais, e não o fato de ser deste ou daquele grupo, família ou partido. Como posicionar-se semanalmente diante dos eventos que enchem as páginas do jornal como comentarista? Tem muita gente que, com a facilidade dos que não botam a cabeça de fora, sugere temas ou pessoas para serem alvos de repulsa e crítica. “Se eu fosse você – admoestam -, dava uma paulada nisso ou naquilo!” Esquecem-se de algo que quem tem a consciência do privilégio de escrever numa página de jornal jamais tira da cabeça. O fato que eu uso palavras, não um porrete ou chibata. A força bruta não tem mediação. Mas as palavras passam pelas pontes do olhar, da sedução da narrativa e da famosa educação que tanto queremos e rejeitamos. Ler não é igual a apanhar e todos nós, depois de tanta fúria jornalística inútil com consequências nefastas, deveríamos ter aprendido melhor a lição.
Dessa consciência decorre uma questão: escrever ou não escrever sobre isso ou aquilo. É fácil bater em cavalos mortos e renegar o lado mais podre do mundo, no melhor estilo apocalíptico brasileiro que joga fora não só a água do banho, mas também a banheira e a criança. Em vez de nos contentarmos com a constatação um tanto patética do óbvio ululante, deveríamos buscar o seu segredo: o que ele realmente representa e diz sobre nós mesmos – o que não é tão óbvio assim. Por isso, eu vivo uma redundância semanal: devo sustentar o bombástico ululante segundo o qual o Brasil é mesmo uma merda; ou devo tentar ver algo novo dentro do que os sábios alemães discerniam como “o eterno retorno”? Escrever quase sempre leva aos isolamentos do mundo, necessários aos exames de consciência com suas redundâncias.
O escondido sempre deixa o rabo de fora. Cada máquina de fazer sentido enxerga certas facetas melhor do que outras. Não há quem possa ver tudo, pois para descobrir certos pedaços da floresta precisa-se da ajuda de algum “outro”: um jornal ou um opositor; alguém situado do outro lado, capaz de “cobrir” as vozes que não ouvimos e nos mostre as fotografias do que está oculto dos nossos olhos.
Nos escândalos dos abusos do poder pelos políticos temos muito mais consciência da lei (ou da norma escrita e conscientemente estabelecida para corrigir) do que dos costumes (inscritos no hábito e inconscientemente institucionalizados como parte da vida). De um membro do Congresso Nacional que empresta seu celular para a filha; de outros que transferem suas cotas pessoais de passagem de viagens para correligionários; das centenas de assessores, recursos financeiros e secretários postos à disposição dos nossos parlamentares, percebemos com clareza o chamado “desrespeito pelo dinheiro público”. Mas ficamos cegos diante da demonstração, cada dia mais arriscada, de amor extremado pelos filhos e pelos companheiros que valem tanto quanto o recipiente do benefício. A lei que deveria valer para todos ilumina apenas o rabo do escândalo, deixando de fora o redundante gato social que insistimos em manter escondido. Ou seja: a discussão do legal, cuja fronteira deve nos conter e cuja transgressão levaria a algum castigo, é muito mais politizada porque ela leva ao embrulho de um moralismo e superficial com suas acusações e defesas, quando não mete criminosos e algozes no mesmo saco inocentando todo mundo. Trata-se, contudo, do rabo do gato. Muito mais complicado do que a lei positiva é discutir as normas que fazem retornar não só as caras dos velhos coronéis e presidentes decadentes e já impichados, mas a ética dos favores, das simpatias sindicais, dos laços de carne e sangue que obviamente racionalizam e legitimam, num plano profundo e jamais discutido, os atos contra o civismo e a tal moralidade pública. Vociferamos com a lei que manda punir, mas ficamos do lado dos costumes que exigem a impunidade. Como tomar partido, onde está a verdade? Pior: quem quer ultrapassar as redundâncias para descobri-la?
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