Os primeiros movimentos do novo governo estão explicitando uma situação política tão inusitada quanto estrategicamente previsível, com o petismo e o lulismo se reencontrando depois de alguns anos de separação forçada pelos escândalos protagonizados por uma cúpula partidária que se desmoralizou no processo de controle da máquina governista, ampliando o espaço para a atuação protagonista de Lula.
Esse retorno do petismo sufocou os partidos aliados, notadamente o PMDB, e tirou da presidente Dilma a capacidade de controlar a formação de seu primeiro Ministério. De um lado o ex-presidente impôs a escolha de grande parte do Ministério, e de outro o partido ampliou sua presença no primeiro escalão, tirando do PMDB ministérios importantes como Saúde e Comunicações, enquanto impedia que aliados como o PSB vissem recompensados na formação do governo os votos que tiveram nas urnas.
Como compensação, num movimento que se mostrou prejudicial e insuficiente, a presidente deixou que os partidos indicassem os nomes para os ministérios, dando força às bancadas no Congresso.
Temos então um governo em que PT e PMDB disputam entre si fatias de poder sem que a presidente tenha até agora conseguido segurar seus radicais. Para colocar ordem na casa, suspendeu as nomeações dos segundo e terceiro escalões, numa clara demonstração de que não está controlando a situação. Dentro desse quadro em que o PT volta a se impor ao governo, o ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, considerado os olhos e os ouvidos de Lula no governo Dilma Rousseff, é também sua boca, através da qual o ex-presidente vem revelando suas intenções políticas. Mas Carvalho, que já foi cogitado para assumir a presidência do PT em vários momentos de crise na legenda, é também o porta-voz do partido dentro do novo governo e como tal está assumindo o papel de tentar domesticar o PMDB e, embora de maneira indireta, a própria presidente.
Gilberto Carvalho surpreendeu a todos em seu discurso de posse afirmando que seria capaz de “se matar” por Lula, o que deu a exata dimensão de sua adoração pelo líder. Ele não se acanha de, mesmo sendo ministro de Dilma, repetir a cada entrevista que Lula está no banco de reservas pronto para entrar em campo em caso de fracasso da titular acidental. É como se quisesse lembrar a todo momento à sua nova chefe a quem ambos devem os lugares que ocupam. E usa Lula também para advertir a oposição de que não se sinta muito à vontade caso o governo não vá muito bem das pernas, porque Lula estará sempre à disposição em 2014 para garantir que o PT não perca suas benesses no governo.
Embora o PT já seja conhecido como o “partido da boquinha” graças à alcunha de Garotinho, que pegou por refletir a realidade, o partido tenta recuperar a fama de puro que o elevou ao governo federal, perdida desde o escândalo do mensalão.
Visto com justiça como um partido fisiológico, o PMDB, ao contrário, tenta livrar-se da fama depois que conseguiu unir-se para levar seu presidente Michel Temer à Vice-Presidência da República. Mas o PT não está disposto a ajudar seu parceiro a lavar seu passado político e a todo momento utiliza o argumento da moralização do serviço público para tomar-lhe lugares nos diversos escalões da administração federal. Foi assim que os Correios, loteado entre os aliados, mas sobretudo com o PMDB, passaram aos petistas para recuperar a imagem de empresa de excelência.
Nada mais exemplar dessa postura do que a defesa de Gilberto Carvalho, em uma reunião com a presença da presidente Dilma, da permanência de Silvio Porto, indicado pelo PT, para zelar pela “boa conduta moral na Conab”. O vice Temer, que já apadrinhou Wagner Rossi na presidência da Conab, de onde saiu para voos mais altos, o próprio Ministério da Agricultura, sentiu-se ofendido pessoalmente.
Esta, no entanto, não foi a única ocasião em que Carvalho dirigiu suas baterias para o PMDB. Em entrevista à “Folha”, ele disse que o PMDB tem “a grande chance histórica” de mudar de imagem, de “romper essa tradição de um partido regionalista e que não foi até hoje alternativa de poder efetivo”. Para bom entendedor — e o PMDB entende bem dessa política —, o novo secretário- geral da Presidência da República está dizendo que, se o PMDB refrear seu apetite por cargos, submetendo-se às ordens do PT, poderá se beneficiar da companhia e mudar sua imagem, hoje tida como fisiológica.
Por trás dessa guerra de palavras, está uma máquina pública historicamente com fortes vínculos políticos com o PT e a CUT, relação que foi aprofundada no governo Lula. Registrada no livro “A elite dirigente do governo Lula”, da cientista política Maria Celina D’Araujo, atualmente professora na PUC do Rio de Janeiro, com participação da também cientista política Camila Lameirão, a mais completa radiografia dessa máquina no âmbito do Poder Executivo nacional revela um forte vínculo com movimentos sociais, partidos políticos, especialmente o PT e sindicatos e centrais sindicais, principalmente a CUT.
Esse “sindicalismo de classe média”, em que predominam professores e bancários, tem sua base no funcionalismo público, que foi fundamental para reativar o sindicalismo brasileiro a partir da redemocratização nos anos 1980 e está na origem do Partido dos Trabalhadores.
Dados oficiais indicam que em julho de 2009 havia cerca de 80 mil cargos e funções de confiança e gratificações no Poder Executivo federal. Desses, cerca de 47.500 eram cargos e funções de confiança na administração direta, autárquica ou fundacional, que podem ser preenchidos discricionariamente pelo Poder Executivo federal.
Segundo levantamentos não oficiais, o governo Lula dobrou a criação de cargos comissionados da administração federal no segundo mandato. São esses cargos que estão sendo disputados pelos partidos aliados, especialmente PT e PMDB. E é essa partilha do butim do Estado que poderá explicitar na prática diária do Congresso a fragmentação da base aliada do governo.
Fonte: O Globo, 05/01/2011
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