A morte de Tancredo Neves pode ser agora percebida como uma tragédia de dimensões históricas. Cada vez mais bem definido o perfil de José Sarney, torna-se indisfarçável sua dificuldade em promover o rompimento com práticas político-administrativas do Antigo Regime ainda hoje. Seria mesmo impossível fazê-lo em meados dos anos 1980, quando instaurada sob sua presidência a Nova República.
A inexperiência administrativa de uma classe política inteiramente mobilizada para o esforço de redemocratização, a síndrome de ilegitimidade de um presidente acidental egresso dos quadros do Antigo Regime e o oportunismo de economistas que ofereceram o elixir da estabilização indolor explicam a grande oportunidade perdida para uma reforma do Estado moldado pelo regime militar. Essa combinação tão explosiva quanto demagógica derrubou a dinâmica de crescimento da nossa democracia emergente, empurrando o país para uma década de caos econômico.
Mais uma oportunidade perdida veio logo depois, nas primeiras eleições diretas para a presidência. Collor e Lula disputavam ferozmente a bandeira dos “contra tudo isso que está aí” no fim do governo Sarney. Eram admiráveis a indignação, a combatividade e as promessas de mudança com que ambos alimentavam as esperanças do eleitorado brasileiro, esmagando os demais candidatos, percebidos como obsoletos, conservadores ou sem apetite pelo poder. Dividido entre Collor e Lula, o Brasil teria mudança ou mudança.
O Congresso entregaria ao presidente as reformas modernizantes que encaminhasse, a tal ponto que lhe permitiu absurdamente sequestrar os ativos financeiros da população. Pena que Collor não tenha acreditado no próprio papel de renovador das práticas políticas que representava. E Collor não teve qualquer complacência do Congresso ou da mídia quando enfrentou seu Mensalão.
A terceira oportunidade foi perdida no governo de Fernando Henrique Cardoso, quando o sucesso do Plano Real se tornou uma alavanca para a mudança constitucional a favor da reeleição, e não das necessárias reformas modernizantes. A inapetência por reformas, particularmente a do regime fiscal, tornou o programa de estabilização extraordinariamente longo e doloroso. Com o excesso de peso sobre os ombros do Banco Central, tivemos juros astronômicos e câmbio sobrevalorizado durante toda a trajetória, tornando o Brasil o paraíso dos rentistas e o inferno dos empreendedores. E os tucanos ainda foram acusados de compra de votos no Congresso para aprovar a reeleição e as privatizações.
Outra oportunidade histórica foi perdida na crise do Mensalão, que poderia desembocar numa verdadeira reforma política. Mas temos ainda uma chance de reescrever a biografia desses nossos personagens, que, inadvertidamente enredados em práticas políticas que desmoralizam o Congresso perante os eleitores, tiverem a coragem de mudar.
(O Globo – 11/8/2009)
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