O escândalo da carne, como o do petrolão, reflete a privatização do aparelho administrativo
É preciso reestatizar, com urgência, o aparelho de governo e todo o sistema da administração direta e indireta – ministérios, autarquias, agências e companhias estatais e de economia mista. A reestatização da Petrobrás, iniciada no ano passado, já se reflete no lucro no trimestre final de 2016, na redução do prejuízo anual, no reforço de caixa e na diminuição do endividamento, conhecido até recentemente como o maior do mundo. Mas é preciso ir muito mais longe. O escândalo da carne mostrou mais uma vez os males da privatização de órgãos e funções do poder público. Nada justifica o loteamento de postos típicos da burocracia estatal entre partidos, em nome de uma aliança governamental ou por causa da influência partidária numa região. Essa tem sido, no entanto, uma prática tradicional.
Revelada a operação contra frigoríficos acusados de fraude, o Ministério da Agricultura divulgou a lista de superintendências estaduais ocupadas por indicação partidária. Dezenove estavam preenchidas de acordo com reivindicações do PMDB, do PP, do PSDB, do PR e do PTB. A lista pode ter incluído funcionários de carreira ou figuras sem vínculo formal com o serviço, mas a diferença, nesse caso, é irrelevante. Nomeações para postos desse tipo só são aceitáveis quando subordinadas a critérios de administração profissional e, nesse caso, republicanos.
A política pública e a gestão privada podem ter objetivos e valores diferentes. Mas os critérios de eficiência, competência, profissionalismo e impessoalidade são importantes nos dois tipos de ação. Além disso, o requisito da impessoalidade é especialmente relevante na área oficial. Não por acaso é uma exigência incluída no artigo 37 da Constituição: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. É o ethos burocrático, típico do Estado moderno, refletido claramente no texto constitucional. Uma característica importante da forma burocrática de organização do poder e das instituições é a separação entre os detentores da função e a propriedade dos meios.
Essa distinção se consolidou em fases diferentes, em diferentes Estados. O amadurecimento dessa noção parece ter ocorrido mais cedo na Inglaterra do que na França. Há quem aponte nos funcionários ingleses, já no fim da Idade Média, uma clara percepção da diferença entre os bens da Coroa e os bens do rei. O próprio rei poderia ainda se confundir, mas para seus burocratas a separação já era nítida.
No Brasil, como em Portugal, o ethos burocrático e a separação entre o público e o privado instalaram-se muito lentamente. Mesmo incorporada no sistema legal, a distinção demorou a pegar – e a mudança, em certos grupos e regiões parece ainda longe de se concluir. Pior que isso: têm ocorrido retrocessos. O mais notável, na História da República, parece ter sido a apropriação por um grupo partidário, no período petista.
Poucas vezes na História brasileira, talvez nunca, o adjetivo “republicano” foi pronunciado com tanta frequência. Raras vezes – de novo, talvez nunca – os meios públicos foram usados com tanto desembaraço para fins pessoais e partidários. Parte da história apareceu no processo do mensalão, mas foi só um pequeno aperitivo. A Operação Lava Jato permitiu uma noção muito mais clara da esbórnia patrocinada com recursos públicos, no caso, principalmente da Petrobrás, uma empresa de capital misto controlada pelo Estado.
A bandalheira mostrada por essas investigações tem sido geralmente descrita como uma sequência de atos de corrupção. Houve corrupção, de fato, assim como nos episódios de propina em troca de favores fiscais e nos casos de financiamento de campanha eleitoral com recursos de origem criminosa. Mas a corrupção em proporções tão grandes foi, sobretudo, um fenômeno político. Tamanha bandalheira dificilmente seria possível sem a apropriação partidária do aparelho estatal.
Partido político, segundo a lei, é “pessoa jurídica de direito privado” e “destina-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal”. A maior parte da definição tem sido jogada fora. Tem sobrado a “pessoa jurídica de direito privado”, voltada quase sempre para a satisfação de interesses igualmente privados. Não há como descrever de outra forma o uso partidário da administração e dos meios das estatais, a negociação de favores fiscais e financeiros e o protecionismo comercial a grupos privilegiados. A distribuição política de postos típicos da burocracia pública, como evidenciou mais uma vez o escândalo da carne, é parte desse grande quadro.
A democracia efetiva envolve a limitação dos poderes dos governantes. Parte dessa limitação pode ser conseguida com a profissionalização dos quadros administrativos e com a restrição do arbítrio para nomear. Regras mais estritas para a gestão fiscal e para a concessão de financiamentos pelos bancos públicos podem também ajudar. Também vale a pena pensar na maior exposição à concorrência global.
Já foi aprovada uma lei para disciplinar as nomeações para altas chefias nas estatais, mas ainda há brechas, embora mais estreitas, para indicações políticas. Sempre será possível enfraquecer essas normas, como se enfraqueceram as da Lei de Responsabilidade Fiscal, enquanto houver espaço para o populismo, for valorizada a imagem do Estado paternal e a educação muito deficiente limitar a cidadania efetiva. Mas não há alternativa. Resta continuar tentando, sem esquecer um detalhe: a corrupção tem florescido principalmente porque a privatização do sistema estatal a favorece. A reestatização pode ser uma bandeira.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 27 de março de 2017.
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