“O que se desagregou com o século XVIII, tanto na China como na Europa, foi um antigo regime biológico, conjunto de constrangimentos, de obstáculos, de estruturas, de relações, de jogos numéricos que até aí tinham sido norma. O jogo disputa-se sem fim entre os dois movimentos: nascimentos e mortes.
“O número partilha, organiza o mundo, dá a cada massa o seu peso particular, fixa por uma vez, ou pouco falta, o seu nível de cultura e de eficácia, os seus ritmos biológicos (e até econômicos) de crescimento, e até o seu destino patológico. Quanto a este último ponto, mostramos rapidamente mas mostramos que a China, a Índia, a Europa são enormes reservatórios de doenças, despertas ou adormecidas, prontas a difundirem-se.”
Civilização material e capitalismo. Séculos XV-XVIII. Fernand Braudel. 1970.
Não há almoço grátis e a longevidade possui múltiplos custos: aumento da incidência de vários tipos de neoplasias (cânceres); aumento da incidência de doenças relacionadas ao envelhecimento do sistema nervoso central; aumento dos custos da previdência social para as sociedades que seguem o modelo estatizado (socialização dos custos); entre outros.
O Iluminismo e o capitalismo propiciaram à humanidade abundância e maior segurança. Algo até então apenas presente em pensamentos desejos de humanos que quando chegavam aos 40 anos eram anciãos. Uma das implicações positivas desta melhoria generalizada nas condições de vida de nossa espécie foi o aumento da longevidade e queda da mortalidade para a maioria da humanidade. Este processo segue até hoje de forma desigual ao longo do tempo e do espaço.
No entanto, como não há caminhos infinitos em linha reta, a mudança do regime biológico também produz fenômenos sociais e biológicos que produzem certo controle da dinâmica de crescimento populacional e de sua distribuição no espaço planetário. As duas grandes guerras, as grandes fomes produzidas por regimes políticos autoritários e totalitários, e a gripe espanhola são alguns exemplos.
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A atual pandemia de COVID-19 poderia cumprir este mesmo papel, atingindo centralmente o topo da pirâmide etária das diversas sociedades contemporâneas, caso não houvesse reação organizada?
As pirâmides etárias da América do Sul e da Europa variaram significativamente dos anos 1960 até 2019. Ambas variando no sentido do envelhecimento de suas populações. Europa na frente do processo.
Destaquei Brasil e Itália para evidenciar a significativa diferença demográfica que há entre ambos países latinos. Os italianos são uma sociedade onde as pessoas com mais de 50 anos são maioria. É possível ver uma das causas primordiais do impacto do COVID-19 na Itália. Neste sentido, sociedades cujos membros são mais jovens devem sofrer impactos negativos menores. A dinâmica no continente Africano poderá corroborará
A pandemia atual também revela a necessidade de se repensar as formas de financiamento e de organização dos atuais sistemas nacionais de saúde, pois as medidas autoritárias tomadas pelos governos e tecnocratas – todas – se basearam em um só argumento: evitar o colapso dos sistemas nacionais de saúde. Um grande processo de engenharia social objetivando controlar a circulação de um vírus.
Há momentos em nossa história que propiciam grande aprendizado para quem se debruçar séria e criticamente sobre os acontecimentos. Um bom exemplo são os anos 1980: o colapso do estatismo soviético; criação e difusão de infraestrutura que permite comunicação instantânea entre indivíduos e grupos dentro e fora de seus países (salvo as exceções autoritárias de resquício soviético); maior integração econômica; circulação de pessoas; de ideias e de recursos diversos. A década de 1980 não foi perdida, ao contrário.
+ Roberto DaMatta: Contaminação e isolamento
Nós, do campo da saúde pública, quando este momento agudo passar, deveremos estudar e aprender sobre como os sistemas monetários e bancários funcionam, pois o que o COVID-19 fez em relação à utilização dos serviços de saúde é algo bem similar ao pesadelo econômico da “corrida aos bancos”. Economistas e formuladores de política também têm muito a aprender quando este processo terminar.
Ao que tudo indica os avanços nos conhecimentos científicos e tecnológicos e a materialização destes em produtos e serviços que atendem as demandas da humanidade fazem com que nossa artificialidade* impeça que a pandemia de COVID-19 funcione como fenômeno biológico que elimine parte significativa do topo das pirâmides etárias mundo afora.
Um alerta fica, no entanto: os avanços produzidos pelo capitalismo, pelas democracias liberais, pelos avanços nas ciências, com todas imperfeições que conhecemos, são extremamente frágeis. Um vírus, o colapso momentâneo mais extenso das redes de transmissão elétrica ou de comida, pode fazer com que voltemos ao regime biológico, político e econômico pré-capitalista. Sejamos zelosos com o que nossos ancestrais nos possibilitaram construir.
* Herbert Simon, as Ciências do Artificial.