Em 2015 Yuval Noah Harari, professor de História da Universidade Hebráica de Jerusalém, apresentou uma palestra que sintetizou as centenas de páginas de seu mais famoso livro, Sapiens. Esta palestra é uma das milhares que o projeto TED disponibiliza.
Harari sublinha que nossa espécie vive em uma realidade dupla, uma objetiva, acessível pelos órgãos dos sentidos e outra que é sobreposta a esta, um mundo de estórias, regras, valores, entre outros. Termos a capacidade de construir tais estórias, de acreditarmos nelas e de agirmos em conformidade a elas é o que nos faz ser o que somos com tudo de bom e ruim que isto implica.
Na introdução de seu livro mais recente, 21 lições para o século 21, Harari afirma:
Embora a perspectiva deste livro seja global, não negligencio o nível pessoal. Ao contrário, quero enfatizar as conexões entre as grandes revoluções de nossa era e a vida interior dos indivíduos. Por exemplo, o terrorismo é tanto um problema de política global quanto um mecanismo psicológico interno. O terrorismo manipula o medo em nossa mente, sequestrando a imaginação privada de milhões de indivíduos. Da mesma forma, a crise da democracia liberal se desenrola não somente em parlamentos e seções eleitorais, mas também nos neurônios e nas sinapses. Dizer que o pessoal é político é um clichê. Mas, numa era em que cientistas, corporações e governos estão aprendendo a hackear o cérebro humano, esse truísmo é mais sinistro do que nunca. Portanto, o livro apresenta observações sobre a conduta de indivíduos bem como de sociedades inteiras.
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(…) após o colapso do fascismo e do comunismo agora o liberalismo está emperrado. Então para onde caminhamos? Essa pergunta é especialmente incômoda, porque o liberalismo está perdendo credibilidade justo quando as revoluções gêmeas na tecnologia da informação e na biotecnologia enfrentam os maiores desafios com que nossa espécie já deparou. A fusão das duas áreas pode em breve expulsar bilhões de seres humanos do mercado de trabalho e solapar a liberdade e a igualdade. Algoritmos de Big Data poderiam criar ditaduras digitais nas quais todo o poder se concentra nas mãos de uma minúscula elite enquanto a maior parte das pessoas sofre não em virtude de exploração, mas de algo muito pior: irrelevância.
Se as estórias que inventamos, contamos e que acreditamos importam para a conformação de nosso agir coordenado e colaborativo, fazer circular ideias ou estórias completas, que se confrontam em todo ou em parte com a estória que a maioria acredita, também importa. Ao que parece somos seres criativos e conformistas. Também ao que parece o aspecto criativo é uma espécie de contra-conformismo.
Em 1989, num artigo intitulado “O custo da obediência”, Roberto Campos apresentou-se a seguinte estória:
Como seria feliz vivermos num país onde se pudesse produzir sem consultar nenhuma autoridade, importar apenas mediante pagamento de tarifas, negociar salários conforme o mérito do empregado e a situação de mercado e praticar preços livres de tudo, exceto da concorrência! A preocupação relevante então seria apenas o custo da obediência à tributação. Segundo os especialistas ingleses esse custo já é em si mesmo tríplice: o dinheiro do imposto, o tempo gasto com as formalidades para pegá-lo e o custo psíquico de decidir se vale mais a pena pagar ou sonegar.
No caso brasileiro, os custos da fiscalidade são exacerbados por quatro fatores: a multiplicidade dos impostos, a superposição das autoridades exatoras (fiscal, estadual e municipal), a abundância de taxas parafiscais e, finalmente, a velocidade das mudanças do fisco. Mal se adaptam os computadores a um cálculo de imposto e os programas têm de ser abortados pela volubilidade fiscal. É difícil obedecer.
Quem está acompanhando de perto as eleições brasileiras de 2018 e possui algum acúmulo teórico sobre liberalismo, intervencionismo estatal, democracia, entre outros temas congêneres, deve ter percebido que a chapa vencedora é um amálgama entre o que se poderia rotular de populismo de direita com liberalismo próximo ao Laissez-faire. A resultante deste amálgama é uma incógnita e dependerá da resistência do Status Quo (tecnocratas, intelectuais, sistema político, estatistas de direita e esquerda, entre outros) e da capacidade do setor social vitorioso vencer esta resistência conservadora.
+ Marcel van Hattem: “Não é possível sustentar a máquina pública da forma como é concebida”
Esta conjuntura específica, nacional, está inserida no movimento humano mundial que, creio, está tentando superar a falta da simplicidade mecanicista que vivemos até a Queda do Muro de Berlin e do colapso do império da Nomenklatura soviética. Esta tentativa de voltar à bipolarização está mediada, como apontou Harari, com a tendência da unificação operacional, econômica das TICs e das biotecnologias. Se isto é verdade, globalmente estamos relativamente próximos da antevisão apresentada pelo filme Elysium. Basta acreditarmos que esta estória é a única alternativa: a polarização simplista do nós contra eles, comandada por populistas do campo do nós e do campo do eles.
Aparentemente os efeitos negativos da ditadura militar sobre o pensamento e valores liberais no Brasil estão se dissipando. Isso pode fazer com que vivamos certa normalidade vivenciada pelos países centrais do sistema econômico mundial e possibilitar a formulação e circulação de alternativas.
Temos acompanhado a montagem do arranjo político-administrativo que materializará o governo da chapa vencedora das eleições para a Presidência da República. Questões como quantidade de ministérios (e cargos) e das pessoas que assumirão as responsabilidades por operar esta maquinaria organizacional estão muito visíveis e chamando atenção. No entanto, pouco se tem falado sobre qual estado queremos, para quê e para quem queremos este estado.
Num momento de devaneio organizacional elaborei um rascunho de estrutura governamental para o Estado brasileiro. Na prática nossa organização estatal está mais próxima de um modelo Unitário do que de uma Federação. Neste exercício parti da trajetória que nos trouxe até aqui (Nova República), da qualidade de nosso sistema educacional, de nosso capitalismo de laços, de nosso posicionamento na divisão internacional do desenvolvimento tecnológico, de nossa dinâmica demográfica e das indagações apresentadas acima por Hirari. O resultado está na Tabela 1.
Tabela 1. Exercício sobre estrutura organizacional do governo brasileiro.
No exercício há nove macro-funções em que o Estado pode estruturar-se. A estas nove podem corresponder nove ministérios? Idealmente sim, mas não obrigatoriamente. Tentei seguir ao máximo o princípio da segregação de funções. Isso explica a separação das funções 1, 2 e 8.}
As funções 1 e 2 são operacionais e meio para o atingimento dos objetivos explicitados pelas preferências dos eleitores, pelos valores e pelas leis. Dada a importância e a complexidade das mesmas, separei-as. Estas são das poucas funções que demandam estrutura própria de pessoal para a execução das atividades. Ambas funções deveriam ser baseadas em poucas e claras regras, as mais simples e objetivas, o que reduz os custos de transação para os mercados e torna seu funcionamento mais eficiente e mais facilmente auditável interna e externamente.
+ Demétrio Magnoli: “Na democracia, a oposição é tão legítima quanto o governo”
A terceira e sexta funções, Relações Exteriores e Defesa, também devem ser executadas diretamente por agentes estatais capacitados para cumprir as missões e tarefas que tradicionalmente são atribuídas ao corpo diplomático e militar dos países.
Justiça, a quarta macro-função, concebo-a como centrada na formulação de regras e estruturas necessárias para que o direito à propriedade, o respeito aos contratos, aos direitos humanos, o combate à corrupção e a correição ética dos agentes públicos sejam garantidas.
A quinta corresponde à ação intencional da sociedade, por meio de SUA organização estatal, para garantir o mínimo necessário para o desenvolvimento individual sustentável, protegendo os que necessitem e propiciando insumos básicos para que as pessoas construam seus próprios destinos de forma livre e civilizada. Acesso universal à educação e saúde básica, renda mínima regionalizada (não salário mínimo), proteção e conservação do meio ambiente, entre outros campos de ação que aumentam as externalidades positivas em nossa sociedade, estão nesta macro-função. Esta área deve ser executada, operacionalizada pela sociedade civil, por empresas, salvo contextos concretos onde isso seja inviável. Ao governo cabe estabelecer marcos e regras gerais, bem como objetivos e meios de mensurar a eficiência, eficácia e efetividade das normas.
Infraestrutura (sétima), como muitos já sabem, é um dos grandes gargalos existentes no país. Neste campo o estado deve se retirar das operações e permitir que empresas com tecnologias e procedimentos mais avançados e eficientes atuem. Ao estado cabe produzir regras gerais que permitam a concorrência entre empresas nacionais e internacionais, entre grandes e pequenas empresas. Telecomunicações, logística e energia devem ser concebidos como um todo que faz com as sociedades centrais sejam o que são. Neste setor está, em boa parte, o fim das pesquisas científicas e tecnológicas aplicadas às mais diversas indústrias do século XXI, incluindo a de produção de alimentos. Nesta macro-função e na quinta o estado deve ser coordenador e maestro.
A função econômica (oitava), creio, deve focar-se na política fiscal, defesa da liberdade econômica e da concorrência, da redução ao mínimo dos custos de transação criados pela existência do Estado, em tornar a carga tributária a menor possível e o sistema arrecadatório o mais simples possível, coordenar o investimento em tecnologia e na formação de capital humano, elaborar e executar política de compras governamentais que atendam às necessidades dos pagadores de impostos. Política monetária é tarefa do Banco Central, cujos dirigentes devem ter mandato claro para defender a moeda em diálogo com a política fiscal.
Por fim, a função de diálogo e negociação entre os poderes constituintes de nosso modelo de estado (executivo, judiciário e legislativo), a nona.
Conclusão
A reflexão sobre que tipos de problemas cabem ao monopolista da violência legítima – o Estado/governo – resolver deve ser constante em qualquer sociedade. Do ponto-de-vista econômico e social talvez seja o questionamento mais importante. Certa vez Milton e Rose Friedman escreveram: “Permitimos que o governo se tornasse grande demais. Temos agora que trazê-lo de volta ao seu tamanho certo. A tirania do status quo torna difícil fazer isto. Mas é algo que pode e deve ser feito. Precisamos descentralizá-lo”.
Parte do processo reflexivo envolve olhar experiências internacionais. Algumas são paradigmáticas, por exemplo, Venezuela e Nova Zelândia. Não há exemplos a serem copiados, mas experiências que outros membros de nossa espécie já vivenciariam e que podem ser-nos muito úteis para evitar que a antevisão de Harari se concretize.